Professora Dra. Rosana Cipolotti*
Professora Titular do Depto. de Medicina da UFS
O mês de abril que se encerrou foi particularmente preocupante nessa que parece ser uma interminável luta contra a COVID-19, já que o número de casos e de mortes foi o mais alto no Brasil desde o início da pandemia, há mais de um ano. Também em abril passamos a receber informações desoladoras, agora vindas da Índia.
Por outro lado, no mês de abril também se comemora o Dia Mundial da Saúde (no dia 7) e o Dia Internacional da Educação (no dia 28), dia em que algumas instituições deram início às celebrações do ano do centenário do nascimento de Paulo Freire, o Patrono da Educação do Brasil de acordo com a lei 12.612 de 13 de abril de 2012 da Presidência da República. É sobre a relação entre saúde, educação e Paulo Freire que trataremos hoje.
Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 19 de setembro de 1921 em Recife, filho de um capitão da Polícia Militar de Pernambuco e de uma dona de casa. Seus três irmãos mais velhos começaram a trabalhar bem jovens, o que possibilitou que o caçula Paulo continuasse estudando. Em 1943 iniciou o curso de Direito na Universidade do Recife (atualmente Universidade Federal de Pernambuco) e durante esse período estudou também filosofia da linguagem. Nunca exerceu a profissão de advogado, tornou-se professor de língua portuguesa em uma escola de segundo grau e em 1946 assumiu o cargo de diretor do Departamento de Educação e Cultura de Pernambuco.
Tornou-se diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife em 1961. Sua experiência com alfabetização iniciou-se em 1963 no Rio Grande do Norte, quando ensinou 300 adultos cortadores de cana a ler e a escrever em 45 dias. A partir daí, Paulo Freire desenvolveu um método inovador de alfabetização, que foi adotado em Pernambuco e logo em seguida, em 1964, pelo governo do presidente João Goulart, que previa a implantação de 20 mil núcleos de educação e cultura no Brasil e a multiplicação de educadores (Plano Nacional de Alfabetização), que era a espinha dorsal de um ambicioso projeto nacional de erradicação do analfabetismo entre os brasileiros.
Poucos meses depois Paulo Freire foi preso, exilado na Bolívia e posteriormente no Chile, onde trabalhou ativamente e em 1967 publicou no Brasil seu primeiro livro – Educação como Prática de Liberdade -, e no ano seguinte Pedagogia do Oprimido. Essa obra foi publicada primeiramente em inglês e somente quatro anos mais tarde no Brasil, em 1974. Foi traduzida em mais de 30 idiomas, ultrapassou a 65ª edição no Brasil e é o único livro brasileiro a constar da lista dos 100 títulos mais indicados por professores de universidades de língua inglesa (Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia). Trata-se da terceira obra mais citada em trabalhos acadêmicos da área de ciências humanas em todo o mundo, à frente de outras como O Capital, de Karl Marx.
Paulo Freire foi professor visitante na Universidade de Harvard, nos EUA em 1969, posteriormente atuou em Cambridge, Genebra, Guiné-Bissau e Moçambique. Retornou ao Brasil em 1980, após o fim do ciclo de governos militares, radicou-se na cidade de São Paulo e dedicou-se a programas de alfabetização de adultos moradores de áreas periféricas. Foi professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e tornou-se Secretário de Educação entre 1989 e 1991, quando criou um programa de alfabetização ainda hoje utilizado em várias cidades do Brasil. Ao deixar a secretaria fundou o Instituto Paulo Freire, que permanece atuante até os dias de hoje em projetos relacionados à educação.
Aos 75 anos, Paulo Freire faleceu no dia dois de maio de 1997 por complicações decorrentes de uma cirurgia cardíaca. Deixou como legado a ideia e a prática segundo a qual o educando é quem cria sua própria educação, voltada para a aquisição tanto da informação quanto da consciência política. É o brasileiro mais homenageado da história, com 35 títulos de Doutor Honoris Causa de universidades da Europa, EUA, América do Sul. Recebeu da *Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) o prêmio de Educação para a Paz em 1986, entre outros. Possui 38 livros publicados, alguns em parceria com outros autores.
O nexo entre Paulo Freire e a educação é óbvio. Mas, e com a saúde? Um índice objetivo que estima a qualidade de vida de uma população é o Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH, medido a partir de três dimensões: renda, educação e saúde. Assim, quem tem mais saúde (vive mais e melhor) é também quem tem educação melhor, e quem tem melhor educação tem melhor renda. Se olharmos na mesma direção e no sentido inverso: quem tem melhor renda também tem melhor educação e melhor saúde.
Entretanto, em uma sociedade que pretende modernizar-se, essa equação não pode ser imutável, e a educação é uma variável que pode ser modificada. A ampliação do acesso à educação passa por políticas públicas inclusivas nacionais, que devem estar presentes desde[ os primeiros anos de vida, mas se torna crucial na entrada do ensino universitário, uma vez que as instituições públicas são o principal objetivo da maioria dos candidatos. Pré-escola que conduza à alfabetização entre os seis e os sete anos, ensino fundamental e médio de boa qualidade, que permita o desenvolvimento das potencialidades das crianças e adolescentes, são metas a serem conquistadas, de forma que, além do acesso, a qualidade do ensino, com objetivos educacionais bem definidos e estratégias que contribuam para a formação de consciência crítica e do papel social de cada jovem traduzem o legado de Paulo Freire em todos os níveis de um projeto educacional público e nacional que se pretenda inclusivo e efetivo.
Para o ensino universitário de graduação e pós-graduação os projetos e ações devem contemplar um complicador a mais: o acolhimento de jovens adultos frutos de várias gerações de elevada desigualdade social no Brasil, que variou ao longo dos 132 anos desde a Proclamação da República, mas acentuou-se fortemente nos últimos anos. Políticas públicas que promovam o acesso de jovens de todos os estratos sociais, de todas as cores de pele, de todas as etnias, de todas as orientações sexuais, ao ensino universitário é a forma lícita mais rápida e eficaz de promover a ascensão profissional desses jovens, melhorar as condições de saúde e renda de suas famílias e reduzir a desigualdade social. Esse é o papel atribuído à educação na obra Pedagogia do Oprimido. Em outras palavras, e parafraseando Paulo Freire, quando o filho do porteiro (ou do trabalhador de qualquer outra profissão de baixa remuneração) tem acesso à Universidade, cursa sua graduação, faz pós graduação, faz intercâmbio no exterior, ele se modifica, modifica sua família e as pessoas do seu convívio, e modifica seus colegas oriundos de lares mais privilegiados, que se beneficiam do contato com histórias de vida diversas das suas.
Cem anos do Mestre Paulo Freire: seu legado nunca foi tão necessário à educação brasileira quanto agora. Se a Universidade pública não for para todos, não será de ninguém. Este texto foi escrito no dia dois de maio de 2021, exatos 24 anos após o falecimento de Paulo Freire.
*Graduação, Mestrado e Doutorado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e Pós-doutorado pela University of Liverpool-UK, Professora Titular do Depto. de Medicina da Universidade Federal de Sergipe, Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde
** Coluna Ciência e Saúde – Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde. Coordenador: Prof. Dr. Ricardo Queiroz Gurgel