Afonso Nascimento – Professor de Direito da UFS
Qualquer discussão sobre o anticomunismo requer que se diga primeiro o que é o comunismo. Nascido no século XIX, o comunismo é uma utopia sobre a possibilidade de um mundo sem explorados e exploradores, sem oprimidos e opressores, uma sociedade sem classes sociais e sem Estado. Está associada ao marxismo (“O Manifesto Comunista”, 1848) e constitui a parte não científica dessa corrente do pensamento econômico. Como qualquer utopia, o comunismo é um projeto de sociedade impossível de se tornar realidade. Semelhante ao céu dos cristãos, essa visão de mundo tem cada vez menos influência sobre as pessoas, o que equivale a dizer que seu apelo para mobilizar adeptos para a luta política tem substancialmente diminuído depois do fim da União Soviética e de seus estados-satélites no Leste Europeu nos 90 do século passado. A não ser em minúsculos grupos humanos, esse sonho de um mundo ideal e perfeito nunca se concretizou. Estados, regimes e governos podem até reivindicar esse rótulo, mas a realidade passa muito longe deles.
Por que não pode se realizar e jamais se realizará? Porque, para se materializar, essa utopia implica antes um Estado forte para pôr de pé uma sociedade o mais igualitária possível. Alguém pensa que as elites dirigentes de um suposto Estado na passagem para a sua extinção largariam as rédeas do poder uma vez por eles conquistadas? Ninguém fez ou fará isso. Foi isso o que aconteceu nas sociedades que se autodenominaram comunistas ou socialistas durante o século XX. O que aconteceu nessas sociedades terminou sendo a passagem do feudalismo ao capitalismo pela via totalitária. Não tem mágica nenhuma. Mesmo assim, é verdade que muita gente deu a vida, e tirou vidas, pensando estar trabalhando para alcançar esse objetivo tão nobre.
A ideologia anticomunista tem uma visão de mundo oposta ao comunismo, claro, apropriando-se e distorcendo elementos da utopia e da prática histórica supostamente comunista para diversos usos políticos. Depois da bem sucedida Revolução Russa em 1917, os seus adversários anticomunistas passaram a descrever o comunismo como sinônimo de expropriação de terras, de meios de produção, de riquezas em geral, etc. Esse sentido de anticomunismo é, de tempos em tempos, reivindicado para atacar algum político ou grupo político que pretenda implementar políticas de redução de desigualdades econômicas e sociais, transferir renda dos que têm demais para outros que nada têm, conquistar o poder democraticamente para fazer reformas, não deixando de servir para desqualificar um adversário político, dar um golpe de Estado etc. Em resumo, é uma retórica política com usos políticos múltiplos e contrários ao igualitarismo e à democracia.
Foi durante o Brasil do século XIX que o comunismo desembarcou aqui, tempo em que era objeto de leitura por pouquíssimos intelectuais conhecedores de línguas estrangeiras e teve pouca repercussão. Quando ocorreu a Revolução de 1917 e, em seguida, com a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1922 que, aí sim, as ideias comunistas ganharam mais simpatizantes e é nesse momento também que nasce o anticomunismo brasileiro. Foi então que as elites políticas e econômicas brasileiras passaram a levar o comunismo a sério. Ainda tratando do caso brasileiro, o anticomunismo criou raízes profundas em 1935, devido à tentativa de golpe de Estado por comunistas em algumas capitais brasileiras do Nordeste e do Rio de Janeiro. Como alguns militares do Exército foram mortos durante a revolta malsucedida, o anticomunismo foi adotado como uma ideologia permanente das Forças Armadas brasileiras.
De 1935 até 2021, a ideologia anticomunista serviu a diversos movimentos políticos. Eis aqui alguns deles: o movimento integralista, liderado por Plínio Salgado, que tentou o seu golpe de Estado com a bandeira anticomunista; Getúlio Vargas deu um golpe em 1937 tendo como justificativa a ameaça do comunismo (“Plano Cohen”); o anticomunista general-presidente Eurico Gaspar Dutra, em 1947, pôs o Partido Comunista Brasileiro e seus seguidores na ilegalidade; os militares das três Forças Armadas deram um golpe de Estado em 1964 e implantaram uma nova ditadura – que matou, prendeu, torturou opositores – contra o suposto perigo vermelho que queria tomar conta do país – e o extremista de direita Bolsonaro fez uso à outrance da retórica anticomunista na campanha eleitoral e no cotidiano de seu governo desastrado que busca minar as instituições democráticas brasileiras.
Pensando especificamente em Sergipe, o comunismo teve algum sucesso na história política sergipana, todavia nunca fez medo a ninguém, já que, enquanto organização, o PCB local sempre foi um grupo político reformista depois do fracasso de 1935, nunca tendo pensado em conquistar o poder pelas armas. Os integralistas sergipanos, também conhecidos como “galinhas verdes”, com seus principais quadros muitas vezes formados nos bancos universitários de Salvador e em outros lugares, podem ser bem representados por Seixa Dória, Manuel Cabral Machado, José Amado Nascimento, Balduíno Ramalho, José Silvério Leite Fontes, frequentemente ligados à militância política católica, mas que também atuaram contra o suposto “perigo vermelho”.
O anticomunismo foi muito usado pelos católicos, clérigos e seguidores, em aberta competição com as organizações comunistas. Começando com a primeira eleição depois da ditadura de Vargas e continuando após a ruptura democrática em 1964, católicos fizeram campanha eleitoral contra candidatos comunistas e contra a União Democrática Nacional(UDN), partido legal apoiado por comunistas. A Juventude Universitária Católica (JUC) batalhou nos meios acadêmicos contra o comunismo real ou imaginário – embora eventualmente tenha havido casos de católicos anticomunistas que se aproximaram de organizações comunistas. Intelectual de alto nível, o arcebispo de Aracaju, dom Luciano Cabral Duarte, é o melhor exemplo do anticomunista católico, na sua luta contra o “comunismo ateu”. Enquanto anticomunistas de carteirinha, os militares usaram o anticomunismo de forma abusiva, cometendo atrocidades contra os direitos humanos durante o regime militar (1964-1985).
No interior da classe política estadual, depois da II Guerra Mundial, políticos anticomunistas (general Tavares de Queiroz, Manuel Cabral Machado, etc.) ocuparam majoritariamente as cadeiras da Assembleia Legislativa. Quanto aos grupos das classes dominantes, os grandes proprietários de terra de Sergipe, nos anos que antecederam ao golpe militar de 1964, chegaram a comprar e a estocar armas para o caso de ter que enfrentar a imaginária ameaça comunista. Esses representantes dos grupos dominantes, somados à alta administração e aos membros de outras elites do setor privado da economia que aderiram aos cursos da Escola Superior de Guerra (Arthur Oscar de Oliveira Déda, Luiz Carlos Fontes de Alencar) e da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (José da Silva Ribeiro, Adélia Pessoa), ganharam mais suporte intelectual ao frequentarem os cursos mencionados.
Nos meios acadêmicos sergipanos de todos os níveis, o anticomunismo grassa até hoje. Desde os anos 1950 até hoje, exemplos de docentes anticomunistas na academia sergipana (professores, gestores), vale mencionar o falecido Manuel Cabral Machado. Enquanto proprietário rural, católico fervoroso, político com diversos mandatos e professor universitário, foi um anticomunista com uma lúcida consciência de classe. O outro grande anticomunista foi Joviniano Carvalho Neto, filho do famoso jurista Carvalho Neto. Os dois foram professores da mesma Faculdade de Direito de Sergipe, espaço onde muitos outros anticomunistas (Monteirinho, etc.) podiam ser encontrados ao longo dessas sete décadas de sua existência. Fundada em 1950 e mais tarde transformada em Departamento de Direito, essa faculdade sempre foi uma importante instituição anticomunista da parte da maioria dos professores.