Prof. Dr. Luiz Carlos Ferreira da Silva*
Professor Associado do Departamento de Odontologia da UFS
“A história é a mãe da verdade, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo do presente e advertência para o futuro”. Essa frase, empregada pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes na clássica e atemporal obra “Dom Quixote”, era só o que me vinha à mente após ouvir que, em um dos locais que trabalho, um dos profissionais havia decidido não se vacinar contra a covid-19. Ao tentar entender por que alguém recusaria ser vacinado, me imaginei no cenário ocorrido no início do século passado, onde pessoas se revoltaram contra a campanha da vacinação para combater a varíola no Rio de Janeiro. Dentre os fatores que contribuíram para esta revolta, estava o temor que a população tinha dos efeitos da vacina, sobretudo por uma série de boatos que se espalhavam. Mesmo com a magnitude de uma doença que, só nos 80 anos que esteve ativa no século passado causou a morte de mais de 300 milhões de pessoas, crendices se opuseram às conquistas da ciência. Felizmente, graças a programas como a vacinação em massa, a ciência venceu a luta contra a varíola e, em 8 de maio de 1980, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarava erradicada a doença infecciosa que mais ceifou vidas na história da humanidade. A hesitação em se vacinar é classificada pela OMS como uma das 10 maiores ameaças à saúde pública mundial. O avanço nos meios de comunicação, principalmente pela capilarização proporcionada pelas redes sociais, permite a divulgação de informações com uma intensidade e velocidade jamais vistas. Entretanto, em um estudo publicado em 2018 na prestigiosa revista Science, pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT) afirmaram que uma fatia de 1% das principais informações falsas é capaz de se difundir entre 1.000 e 100.000 pessoas, enquanto as verdadeiras raramente se difundem para mais de 1.000. Além disso, essas notícias falsas se difundem mais rapidamente. Em uma entrevista na última semana de fevereiro, divulgou-se de forma distorcida um número alarmante de pessoas que haviam sofrido efeitos colaterais ou morrido depois de serem vacinadas contra a Covid-19.
Entretanto, os dados divulgados referiam-se a eventos adversos suspeitos, relatados em uma ferramenta de acompanhamento do Centro para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, onde o próprio site avisa que os números não podem ser usados para concluir que os efeitos informados foram causados pelos imunizantes. Testes são realizados em milhares de pessoas, em vários países, justamente para verificar segurança e eficácia de cada vacina e avaliar possíveis efeitos adversos que podem ou não ter relação com o imunizante. O movimento antivacina cresceu nos anos 1990 após o médico britânico Andrew Wakefield fraudar um estudo para tentar relacionar a vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) e o desenvolvimento de autismo. Apesar da publicação ter sido desmentida várias vezes, o estrago já estava feito e em larga escala. Em 2019, o Brasil perdeu a certificação de país livre do sarampo, depois da ocorrência de notificações confirmadas por mais de 12 meses. O estudo “The real-world effects of fake news”, que analisou postagens sobre a vacina tríplice viral no Twitter, entre 2012 e 2018, identificou um aumento de 800% nas informações falsas com consequente redução de 1,6% na cobertura vacinal.
Segundo dados divulgados no final do ano passado pelo Ministério da Saúde, as coberturas vacinais não atingem nenhuma meta no calendário infantil desde 2018. As vacinas atualmente disponíveis contra a covid-19 são seguras e não foram desenvolvidas a toque de caixa. Muito antes do surgimento do Sars-CoV-2, um pequeno grupo de cientistas trabalhou durante 12 anos tentando decifrar um complexo enigma viral, usando uma técnica revolucionária que manipulava uma proteína cuja forma se altera para deixá-la imutável, o que viabilizou as primeiras vacinas contra o coronavírus. Além disso, os 40 anos de estudos dedicados à descoberta de uma vacina contra o HIV impulsionaram esse desenvolvimento. Os testes clínicos foram acelerados, mas seguiram o rigor metodológico necessário para garantir segurança e eficácia. As liberações emergenciais recebem esse nome porque ocorrem antes de os testes de eficácia serem completados, mas só depois de todas as avaliações de segurança terem sido realizadas. Quando se diz que uma vacina apresentou determinado percentual de eficácia, é importante ressaltar que não se refere a impedir o contágio, mas, sim, reduzir gravidade e morte. Sem vacinas, algum dos nossos ancestrais provavelmente teria morrido de poliomielite, tétano ou alguma outra doença infecciosa. Entretanto, o seu uso previne a morte de 2 milhões a 3 milhões de pessoas por ano. A Academia Brasileira de Ciências (ABC) está promovendo a campanha intitulada “Vacina é Ciência” para esclarecer a população sobre o valor que a imunização tem para a saúde pública e como ela tem sido desenvolvida com base em princípios científicos. No livro “O mundo assombrado pelos demônios”, Carl Sagan nos brinda com a brilhante frase: “a ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento. É apenas o melhor que temos”. Que essa “vela no escuro” possa iluminar as nossas escolhas e que a história nos sirva como advertência para o futuro.
*Professor Responsável pela Disciplina Metodologia Científica do Programa de Pós-graduação em Ciências e Saúde da UFS e Cirurgião Buco-Maxilo-Facial da Clínica Sorcise e do Hospital Primavera