Ricardo Lacerda*
Professor do programa de mestrado de economia da UFS
Os analistas econômicos ao redor do mundo acompanham com enormes expectativas os desdobramentos do plano de investimentos de longo prazo submetido pelo governo do presidente Biden ao congresso dos EUA. Intitulado American Job Plan, caso aprovado integralmente pelo parlamento daquele país, vai adicionar em oito anos cerca de US$ 2,3 trilhões em investimentos de caráter estruturante ao já aprovado pacote emergencial de US$ 1,9 bilhões, o American Rescue Plan. As expectativas do mundo em relação ao plano proposto decorrem em parte da magnitude dos recursos envolvidos, mas sua importância é ainda maior por conta da mudança de rota a que se propõe em termos da concepção da atuação que o estado deve ter na economia e da centralidade que a questão ambiental assume, particularmente da mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, na estratégia de desenvolvimento que foi elaborada.
O American Job Plan é apresentado como sendo uma oportunidade de reimaginar e reconstruir uma nova economia, em que o investimento público retomaria parcialmente o espaço perdido enquanto parcela do PIB, desde o apogeu da era keynesiana de bem-estar social nos anos sessenta do século passado. O plano se fundamenta na constatação de que a economia norte americana, a maior do mundo, vê sua liderança ameaçada por décadas de desinvestimentos em infraestrutura econômica, em estradas, saneamento, energia e telecomunicações, ao tempo que perdeu a capacidade de gerar internamente bons empregos, ou seja, empregos de qualidade com remunerações compatíveis e direitos assegurados. O vínculo explícito entre a retomada do poderio industrial (enfraquecido nas últimas décadas), a expansão dos investimentos nos setores estratégicos, em que a questão da mudança climática aparece como desafio e oportunidade, e a geração de emprego de qualidade é uma das bases de sustentação do plano de desenvolvimento.
Competição com a China
A sombra da perda de competitividade em relação à China percorre o diagnóstico American Job Plan do início ao fim. Está expressa, entre outras passagens, quando o documento constata que a economia norte americana vem perdendo posições em relação às principais economias concorrentes em dimensões tão cruciais quanto Pesquisa & Desenvolvimento (P&D), manufatura e recursos humanos. Ver a versão integral do plano em https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/03/31/fact-sheet-the-american-jobs-plan/.
A mudança de rota de desenvolvimento presente na proposta assume importância especial quando o documento reconhece explicitamente que as forças de mercado (de oferta e demanda) não têm se mostrado capazes de fazer o redirecionamento dos investimentos para que a economia norte americana recupere o atraso em relação aos principais países concorrentes.
Falha de mercado e o investimento público
Em entrevista postada em podcast de 09 de abril do colunista Ezra Klein, do jornal New York Times, o principal conselheiro econômico do presidente Biden, Brian Deese, elenca razões práticas para defender a liderança dos investimentos públicos como ferramenta necessária para retomar a competitividade da economia dos EUA. Sua argumentação se assemelha às abordagens de falhas de mercado, especificamente do problema da coordenação dos investimentos. Brian Deese argumenta em determinada passagem da entrevista que o setor privado não tem, por si só, como alavancar os investimentos necessários para instalar uma rede ampla de estações de recarga de veículos elétricos nas rodovias do país. Neste, e em outros casos, o investimento público teria que partir na frente para sinalizar e, assim, debloquear as oportunidades para o setor privado. De forma similar, os investimentos públicos são imprescindíveis para reduzir a vulnerabilidade e a dependência de importações de semicondutores e em outros segmentos estratégicos para retomada do poderio industrial.
Na entrevista, o principal conselheiro econômico de Joe Biden deixa clara a necessidade de ser pragmático e, assim, se libertar das amarras ideológicas vinculadas à suposta supremacia das economias de livre mercado. Em determinada passagem ele reconhece que a economia chinesa, que não opera com base no livre mercado, vem enfrentando os desafios em diversos dos segmentos mais importantes da atividade econômica com maior competência do que os EUA: está liderando a construção de trens de alta velocidade, enquanto os EUA ainda estão patinando nessa área; está aumentando os investimentos em P&D em setores estratégicos como parcela do PIB; e, finalmente, a China vem planejando meticulosamente esses investimentos há mais de uma década, enquanto os EUA viram sua infraestrutura se deteriorar progressiva e perigosamente.
Ecossistema produtivo e inovativo
Deese conclui, em linha com as abordagens econômicas mais pragmáticas (e heterodoxas), que o fundamental é fazer o máximo possível em termos de fortalecer um ecossistema de inovação nos setores estratégicos, tarefa que não pode ser deixada ao encargo da iniciativa privada, sempre destacando a complementaridade entre os investimentos públicos e os investimentos ao encargo das empresas, na perspectiva de que é necessário o governo fazer o investimento inicial estratégico e lançar os alicerces dessa transformação para desbloquear o potencial do capital privado. O áudio e a transcrição da entrevista estão acessíveis em https://www.nytimes.com/2021/04/09/opinion/ezra-klein-podcast-brian-deese.html.
O mais importante na proposição do American Job Plan para nós brasileiros são as implicações que a sua implantação deverá ter em termos de concepção do papel dos investimentos públicos e da centralidade das questões ambientais nas políticas de desenvolvimento mundo afora. Para além das especificidades dos problemas nacionais, caso o plano não seja bloqueado ou esvaziado pela oposição, ele significará uma mudança de grande magnitude nas estratégias de desenvolvimento. Diante das faltas de perspectivas que vive o Brasil nos dias de hoje, sem dúvida, o seu êxito traria um grande alento, um sopro de esperança de que dias melhores virão.
*Assessor Econômico da Secretaria Geral de Governo de Sergipe e integrante da ABED- Associação Brasileira de Economistas pela Democracia