Anotações sobre a cultura jurídica brasileira

Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS

A cultura jurídica brasileira é, em linhas gerais, branca, masculina, de uma sociedade que se urbanizou e se industrializou e é imposta pela região Centro-Sul às demais regiões do Brasil. Essas são as suas “fontes”. São esses traços que predominam entre aqueles que fazem as leis no país. Não nos parece que essas constatações empíricas sejam motivos para debate. Essa cultura não é uma invenção brasileira, mas importação da Europa a partir da segunda metade do século XIX, em termos de leis, instituições e doutrinas.

Dos países ibéricos (Portugal e Espanha), a cultura jurídica brasileira herdou um certo modo de pensar problemas e leis. Com efeito, temos a mania de pensar que, para cada problema social que aparece, é preciso fazer uma lei. Por isso temos leis demais no país, o que nos leva a outro traço da nossa cultura: leis que “pegam” e leis que “não pegam”. Aí chega alguém que diz: “Nós temos as leis mais avançadas da terra nessa área!” E daí? Se elas são leis que “não pegam”?!

Ela é uma cultura normativista e estatista. O fetichismo da norma é uma realidade inquestionável, tanto é assim que os estudantes de direito passam a maior parte de seus estudos e tempo nas faculdades de Direito aprendendo a ler e a entender os sentidos das leis e dos códigos. Quanto ao estatismo jurídico, ele não poderia ser maior. Tudo tem que passar pelo Estado (fóruns e tribunais). No Brasil, formas não estatais de resolução de conflitos são plantadas e, apesar de esforços, não parece dar frutos.

O evolucionismo histórico é mais um traço da nossa cultura jurídica. É muito corrente lermos ou ouvirmos alguém falar do “aperfeiçoamento” de nossas leis à medida que o tempo passa. Quanto mais velha fica sociedade brasileira, melhores se tornariam supostamente as nossas leis. E isso existe? Nossos especialistas parecem não entender que existem avanços e recuos porque leis refletem a correlação de forças entre grupos dominantes e grupos dominados. Vejam a atual reforma trabalhista.

A cultura jurídica brasileira é formalista? Todas as culturas jurídicas, antigas e modernas, geralmente o são. No caso brasileiro, tem havido alguns esforços para dar-lhe um aspecto menos formalista. Exemplos disso são os tribunais de pequenas causas, civis e criminais. Nossa cultura jurídica também é muito paternalista. Este é, por exemplo, o caso da lei e da justiça do trabalho, bem como da lei constitucional de 1988. Essas duas legislações e tribunais não são produtos de lutas sociais e políticas.

A cultura jurídica brasileira não é uma cultura voltada para resultados, mas para processos. Parece que profissionais do direito e clientela dispõem de todo o tempo do mundo. Daí as “indústrias” de liminares, de recursos intermináveis, protelações, engavetamentos, exclusão das pautas dos tribunais, etc. Isso tem mudado um pouco com as cobranças do CNJ. Teria que haver muitas mudanças nas regras do direito processual brasileiro para que mudanças ocorram. As atuais quatro instâncias ainda são um bom exemplo do que estamos fazendo, embora se fale em duplo grau de jurisdição. Enquanto cultura não voltada para resultados, ela é muito diferente da cultura jurídica norte-americana.

A nossa cultura jurídica sofre de um mal que é partilhado com outras instituições estatais: os especialistas em Direito lotados em instituições estatais tendem a ser maiores do que elas. Isso quer dizer o império da lei só é válido para certas pessoas. Basta pensar nos casos do Mensalão e da Lava-Jato para perceber isso. Os magistrados quase sempre se sentem acima da lei e acima de qualquer suspeita.

Em parágrafos anteriores nós escrevemos que a nossa cultura jurídica é muito formalista. É preciso acrescentar a isso que ela também é muito informal e personalista, no sentido de que as relações pessoais (amizade, parentesco, compadrio, etc.) atravessam todas as práticas jurídicas no Brasil. É devido à força das relações pessoais que os casuísmos, os privilégios, os jeitinhos, o nepotismo que é praticado como qualquer outra instituição estatal, as prescrições, os arquivamentos, etc., são tão frequentes em nossos tribunais. Fica muito difícil falar-se que a lei é igual para todos. Todavia, pensamos que os casos de corrupção (comércio de sentenças, etc.) são desvios.

O que pensam os destinatários dos serviços jurídicos que fazem parte dessa mesma cultura? Embora os nossos especialistas não gostem de ler coisas do gênero, os usuários desses serviços nutrem profunda desconfiança pelos operadores legais, especialmente pelos advogados. Pesquisas mostram que até mesmo estudantes de Direito se confundem com a população quanto a essa percepção negativa, mas não de forma tão generalizada. A atual crise jurídica advinda da dificuldade de funcionar dentro da lei no caso da Operação Lava-Jato só tem reforçado essa compreensão negativa da cultura legal brasileira.

Rolar para cima