Dom Brandão de Castro: do assistencialismo ao engajamento

Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS

Foi-se o tempo em que brasileiros tinham respeito e admiração por bispos e padres que tomavam partido não retórico contra injustiças sociais e contra situações de opressão que ocorriam no campo e nas cidades do país. Homens de fibra como dom Helder Câmara, dom Pedro Casaldáliga, dom Evaristo Arns, entre outros, faziam denúncia de violações dos direitos humanos cometidas pelo regime militar, bem como por indivíduos e instituições da sociedade civil. Eram pessoas com compromisso com valores do cristianismo e com as declarações dos direitos humanos. Além dos nomes da lista incompleta acima, incluiremos dom José Brandão de Castro, o primeiro bispo da Diocese de Propriá, o que significa dizer bispo da região do Baixo São Francisco, ontem e hoje o maior bolsão de pobreza de Sergipe.

Foi um bispo que chegou a Sergipe em 1962, proveniente de Minas Gerais e que trabalhou com dois arcebispos de Aracaju, a saber, Dom José Vicente Távora e dom Luciano Duarte. O bispo mineiro tinha nascido numa família classe média e nunca escondeu que era anticomunista. Apoiou golpe militar de 1964, celebrou missa e fez marcha para comemorar a ruptura democrática que ocorria no país.

Na sua diocese recém-fundada, fez visitas a diversas cidades e a povoados e concluiu que ali vivia uma população católica mas quase sem nenhuma instrução religiosa. Esse foi o perfil construído por ele. Para poder realizar o seu trabalho, concluiu, tinha um problema principal para resolver: a sua diocese não tinha quadros religiosos com os quais trabalhar junto ao seu rebanho de miseráveis. Além de criar um seminário, buscou na França e na Bélgica padres e freiras que desejassem vir trabalhar em Sergipe como missionários, no grupo dos quais também incluiu católicos leigos dos dois países. Não muito mais tarde, ou quase ao mesmo tempo, também aqui aportaram freiras e padres brasileiros. Foi assim que, com equipe formada, dom Brandão lançou-se ao trabalho de bispo que lhe fora destinado por seus superiores hierárquicos.

Para que se tenha uma ideia da grande presença de padres estrangeiros na Diocese, apresentamos aqui alguns de seus nomes: Paul Lebeau, Nestor Mathieu, Guido Michel Dessy, Gérard Olivier, Claude Philippe, Domingo Pulgiz, Jean Sielski, Henri Kuleska, Henri Tomazzewski, etc. Também chegaram à conservadora Propriá as voluntárias estrangeiras como Anita Nissink e Monica Poncin, etc. Essas pessoas do velho continente passaram a viver o cotidiano do povo da região e, de respente, pareciam sertanejos e ribeirinhos pobres que falavam uma língua que não era o francês da Bélgica e da França, mas o sergipanês em conflito com a gramática e o dicionário do Brasil. Seríamos injustos se negássemos a importância dos padres brasileiros nesse trabalho de engajamento político, alguns dos quais mais tarde se tornaram políticos.

Dom Brandão não era o que se poderia chamar de um bispo progressista, embora frequentasse encontros nacionais e internacionais de grupos religiosos ligados à Teologia da Libertação. A sua prática era o assistencialismo religioso tão comum ao Brasil de ontem e de hoje – e muito semelhante ao assistencialismo que fazem as secretarias municipais e estaduais de assistência social pelo país afora. Com uma diferença: enquanto o assistencialismo religioso busca o controle sobre as “almas” do rebanho, o assistencialismo político não quer senão o controle dos votos dessa população. E não é raro que os dois assistencialismos se juntem, como foi muito comum na maior parte da história do Brasil.

Tradicionalmente, em Propriá e outras cidades da mesma região, os religiosos católicos tinham uma aliança mais do que explícita com os grupos políticos e econômicos dominantes. De acordo com um certo relato, as chaves da casa paroquial, da igreja, entre outras, ficavam sob o controle desses grupos civis. Dada tal imbricação, a igreja não passava de uma extensão dos interesses políticos e econômicos dos mandões da região.Aos poucos, porém, esse quadro vai sendo modificado com a atuação dos times de trabalho de dom Brandão, que se estabeleceram em Comunidades Eclesiais de Base em 1971 e que passaram a incomodar os poderes estabelecidos locais.

Em nossa opinião, isso pode ter tido a ver com o fato de os religiosos estrangeiros não terem vínculos com os grupos dominantes locais, bem como, de certa forma, o fato de Dom Brandão também ser um “estrangeiro”, ou seja, não sergipano. Começou a haver uma certa autonomia dos religiosos em relação aos poderosos da região e, por conseguinte, com o regime militar em Sergipe. No ano de 1966, dom Brandão foi chamado a depor na Polícia Federal diversas vezes. Como resultado disso, é nesse ano que ocorre um certo distanciamento dos religiosos da Diocese de Propriá com o regime militar. Mas foi no caso da Fazenda Betume que a grande ruptura teve lugar. Segundo as palavras do próprio Dom Brandão, “não resta dúvida que foi o caso do Betume que abriu meus olhos”. Depois desse caso, dom Brandão passou abertamente a fazer a sua opção preferencial pelos pobres, abandonando práticas de assistencialismo por aquelas de engajamento religioso ao lado dos trabalhadores rurais.

Foram esses os principais conflitos – que quase exclusivamente giravam em torno da terra – em que se envolveram dom Brandão e suas equipes: o caso da ocupação da Cooperativa Camurupim, onde trabalhavam padres belgas, na qual a Polícia Federal fez buscas, sem explicar as razões para isso, apenas revelando tratar-se de problema de segurança nacional no ano de 1973; o caso da agressão ao frei Roberto Eufrásio, que foi agredido fisicamente pelo filho do dono da Fazenda Araticum, em 1974; o caso da Fazenda Betume, comprada pela CODEVASF, empresa federal que não pagou indenização a posseiros e agregados da terra; o caso do povo indígena Xocó em 1978; o caso dos camponeses de Santana dos Frades; o caso dos moradores do povoado Ilha do Ouro em 1980. Por engajar-se nessas lutas do lado dos trabalhadores, o bispo e seus seguidores receberam críticas e ações de solidariedade da parte de religiosos e civis, dentro e fora de Sergipe. Não se pode esquecer que essas batalhas começaram no governo do general Médici e entraram no governo do general Figueiredo e que o uso da violência – até mesmo dentro da Igreja! – não faltou.

Por conta de sua ação ao lado de trabalhadores rurais, índios e quilombolas, dom Brandão foi chamado por autoridades federais de “inocente útil”, o que significava dizer que ele não era comunista. Enquanto dom José Vicente Távora esteve vivo, ele contou com o apoio do arcebispo de Aracaju. Com a sua morte em prisão domiciliar na Cúria, o posto do religioso cearense passou a ser ocupado por dom Luciano Duarte, aliado dos militares, que lhe retirou suporte e passou a trabalhar, com sucesso, para fazer expurgos dos padres estrangeiros. É aqui que a Polícia Federal começa a colocar dificuldades para a renovação dos vistos de permanência no país dos padres estrangeiros e têm início as pressões para retirar dom Brandão de Sergipe. Então, de “inocente útil”, o bispo mineiro que tinha feito sua carreira em solo sergipano, recebeu a alcunha de “comunista”, agressão também feita por dom Luciano Duarte.

Religiosos que, em diversas ocasiões, dividiram dormitórios improvisados com dom Brandão testemunharam pesadelos do bispo mineiro que gritava “Dom Luciano, eu sou comunista!” Para um anticomunista como ele ser chamado de comunista parecia algo equivalente a ato de tortura moral. Dom Brandão não suportou as pressões de religiosos (Núncio Apostólico no Brasil, dom Luciano Duarte, etc.) e de autoridades do regime militar e, finalmente, em 1987 renunciou ao seu posto na Diocese de Propriá e voltou para as suas Minas Gerais. Com a sua partida, a Igreja Católica sergipana vem se arrastando através do velho assistencialismo e perdendo seguidores no mercado da fé.


Esse texto está baseado livremente na dissertação de mestrado de Isaias Carlos Nascimento Filho, intitulada “Dom Brandão, o profeta do povo de Deus do Baixo São Francisco”, a qual foi defendida na Universidade Católica de Pernambuco no ano de 2012.

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