Afonso Nascimento*
Professor de Direito da UFS
O que é um currículo jurídico? Numa primeira aproximação, trata-se de uma síntese do saber profissional jurídico supostamente necessário para a formação de bacharéis em direito. Esse saber profissional é apresentado na forma de disciplinas que devem ser cursadas por estudantes e transmitidas por professores. Embora nos circunscrevendo aqui a um enfoque formalista, devemos acrescentar que o saber profissional jurídico vai muito além do que está no documento chamado currículo jurídico.
Quanto às disciplinas em geral, elas podem ser classificadas da seguinte forma. Existem disciplinas não jurídicas. São exemplos de tais disciplinas Economia, Antropologia, Metodologia Científica, Filosofia, Psicologia, Sociologia, entre outras. Com a inserção do adjetivo “jurídico”, qualquer uma delas se transforma em disciplina jurídica. Essas disciplinas teóricas geralmente são ensinadas nos dois primeiros semestres dos cursos jurídicos e servem, por causa de sua interdisciplinaridade, para dar aos estudantes uma visão mais alargada do direito. Desde o primeiro currículo jurídico brasileiro (1827) até hoje, disciplinas desse tipo são incluídas nos currículos jurídicos e explicam porque, durante certo tempo, os profissionais em direito recebiam diplomas de bacharéis em ciências jurídicas e – atenção – “sociais”.
As demais disciplinas são mesmo jurídicas ou disciplinas dogmáticas (sem sentido pejorativo) porque se referem à leitura ou à recitação das leis e dos códigos em vigor no Brasil. Essas disciplinas dogmáticas são precedidas por duas outras que poderíamos também chamar de “teóricas”, a saber, Introdução ao Estudo do Direito que é, a rigor, uma introdução às leis civis ou ao seu código, enquanto a outra, Hermenêutica Jurídica, é fundamental para a leitura e a interpretação de todas as leis e de todos os códigos, presentes e ausentes nos currículos. Por isso é estranho encontrar por aí currículos jurídicos em que a disciplina Hermenêutica Jurídica é tratada como “meia disciplina”, no sentido de não ter a carga horária de uma “disciplina completa”. Nunca é demais dizer que as disciplinas dogmáticas ocupam em torno de 80% ou mais dos currículos jurídicos.
Os currículos jurídicos têm por base leis produzidas por regimes autoritários e democráticos. As leis aprovadas autoritariamente são ministradas ao lado daquelas geradas em tempos de democracia. Vejam os exemplos das leis e dos códigos do Império, da primeira república, dos quinze do primeiro governo Getúlio Vargas, do regime militar e do regime de exceção atual. Para muitos professores de direito, isso parece não fazer a menor diferença, os quais, pensando assim e acreditando na sua imparcialidade na interpretação das leis, naturalizam e legitimam leis e códigos oriundos de regimes autoritários. Os professores de direito de faculdades e de universidades públicas e privadas, no ambiente acadêmico, são os únicos especialistas autorizados a fazer a leitura e a interpretação das leis.
A base empírica do ensino jurídico são as leis em vigor no país. Poderia ser diferente? Mesmo o currículo das duas primeiras faculdades (Olinda/Recife e São Paulo) dominados pelo Direito Natural, incluía leis em vigor. Basta lembrar que, em 1850, foram aprovados os primeiros código comercial e código criminal e que, até a produção do primeiro Código Civil, em 1916, foi feito uso de regras das Ordenações Filipinas e de uma Consolidação das Leis Civis. Porém é verdade que, com advento da República, o Positivismo tornou-se a ideologia jurídica hegemônica e incluiu, claro, somente leis e códigos em vigor como base empírica. Nenhuma escola de direito vai montar seu currículo com leis que foram revogadas.
A história dos currículos jurídicos é então aquela do entra-e-sai de leis por terem sido aprovadas e revogadas, leis essas que são consideradas pelas autoridades educacionais do MEC (quando passou a existir com Vargas) fundamentais para o funcionamento da sociedade e, portanto, para serem ensinadas nas faculdades e departamentos de direito do país. De todas as leis e de todos os códigos estudados, aparece como o mais importante o Código Civil, seguido do Código Penal e do Código do Trabalho. Todavia, outras leis podem ser lembradas como leis tributárias, leis administrativas, leis eleitorais, leis previdenciárias, etc.
É necessário destacar as disciplinas do chamado “Direito Processual”. A propósito, não custa nada lembrar que existem leis substantivas e leis adjetivas ou processuais. As leis substantivas dizem quais são as regras do jogo em sociedade, e estão carregadas de valores e de ideologias dizendo o que é legal e ilegal ou ainda o que é lícito e ilícito. As leis processuais declaram, grosso modo, quais são as regras do jogo a serem seguidas na prática pelos profissionais do direito no trabalho forense.
As leis substantivas e processuais que entram nos currículos jurídicos são esmagadoramente federais. Isso mostra como são muito frágil a ideia e a prática do federalismo brasileiro. Uma consequência positiva desse fato é que, alguém com formação jurídica, em qualquer estado da federação, poderá trabalhar nos meios jurídicos sem precisar aprender o direito estadual onde estiver, à diferença do ocorre nos Estados Unidos. Nesse país, a força do federalismo impede que profissional do direito seja especialista nas leis dos cinquenta estados americanos. Somente na república velha, os estados brasileiros puderam pôr em prática o federalismo em termos de leis processuais e, por conseguinte, as faculdades de direito.
Dependendo das paixões e dos interesses dos especialistas acadêmicos, as leis que fazem parte dos currículos jurídicos podem ser chamadas de muitas maneiras, a saber, leis que concorrem para o controle social ou que promovem a mudança dentro da ordem política estabelecida, leis que garantem ou retiram privilégios de classes sociais, leis que não são regulamentadas, leis com e sem brechas explícitas, leis que ajudam a reproduzir as desigualdades sociais, etc. Os interpretes autorizados das leis que são os professores sempre estão dando sentido ou ressignificando o que as leis querem dizer.
A transformação de leis e de códigos em disciplinas jurídicas é necessária para a formação dos currículos jurídicos. Assim é que, como vimos, a lei que é o Código Civil passa a ser chamada de Direito Civil, sendo a lei mais importante do país por causa de seu alcance social e pela sua longevidade. O Código Penal é tornado Direito Penal, bem como o Código do Trabalho (CLT) vira Direito do Trabalho, só para ficar nos exemplos mais importantes. Os códigos que são as leis constitucionais, transformadas em Direito Constitucional, não possuem a mesma relevância das três leis citadas acima no funcionamento da sociedade, devido às rupturas e à crônica instabilidade da política do país. A quebra de regras constitucionais como temos visto desde 2016 é uma bem eloquente evidência do que estamos falando.
*Coordenador do Núcleo de Estudos sobre o Estado e a Democracia