Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS
Membro da Comissão Estadual da Verdade
Milton Coelho de Carvalho é filho de ferroviário comunista baiano que, por causa de perseguição política nos anos 1950, foi transferido para Aracaju. Estudou no Ateneu e começou a trabalhar na Petrobrás em 1966, depois de aprovado em concurso público. Nessa empresa exercia a função de encarregado do almoxarifado, ficando encarregado de cuidar dos materiais necessários ao funcionamento da empresa. Era ele quem recebia, guardava e liberava material segundo os pedidos feitos pelas unidades da empresa. Dentre outros materiais estavam as dinamites.
Ele era membro do PCB em Sergipe. Para tomar posse no emprego na Petrobrás, teve que enfrentrar um problemão: o departamento de recursos humanos da estatal lhe pediu um atestado de bons antecedentes, o que para ele significava um atestado de bons antecedentes políticos e ideológicos. Precisou se deslocar diversas vezes em busca de tal atestado na Secretaria de Segurança Pública de Sergipe, sempre recebendo um documento que relatava seu passado de comunista e suas duas prisões ocorridas em 1964. O prazo para fazer a entrega do atestado estava acabando e, assim acontecendo, o próximo candidato na fila dos aprovados seria convocado. Foi então que alguém lhe deu uma ideia. Que tal ele ir a um cartório e pedir esse atestado? Conseguiu uma declaração segundo a qual ele não tinha nenhuma condenação na Justiça Criminal e Civil de Sergipe. Era, portanto, um operário ficha-limpa. Aí deu tudo certo. Virou petroleiro.
Por que conseguiu contornar esse problema? Porque nesta época não havia a Divisão de Informação da Petrobras, conhecida como DIVIN, que era o órgão do regime militar encarregado de fazer o controle ideológico dos candidatos a emprego na empresa estatal, bem como todas quaisquer atividades políticas dos seus funcionários. Segundo ele, a DIVIN da Petrobrás em Sergipe possuía os seguintes quadros: Graciliano Nascimento e depois Rivaldo (chefes); Oscar Ribeiro Fontes Lima; Edélzio Rodrigues dos Santos (vindo de São Paulo); José Mendonça (oriundo de Estância); Otávio, Célia e Ademir. A sua sede ficava no mezanino Edifício Cidade de Aracaju, no centro da cidade. Não soube dizer quando essa divisão do SNI foi desativada.
Pessoalmente Milton era um militante contrário a todo o tipo de violência, era contra a luta armada. Além disso, a sua organização clandestina, o Partido Comunista Brasileiro, se fragmentou por se recusar a seguir o caminho da guerrilha urbana e rural – embora em seus quadros existissem militantes com treinamento militar realizado em Cuba, na extinta União Soviética e aqui mesmo no Brasil. Por tudo isso, Milton Coelho continuou o seu trabalho no almoxarifado vendo as dinamites apenas como objetos trabalho de sua empresa e não como algo que poderia ser usado política ou militarmente. Não foi à-toa que recebeu medalha de bom trabalhador durante o tempo que passou na empresa estatal.
Não pensava que entraria para a história política de Sergipe. Foi aí que teve lugar a assim chamada Operação Cajueiro em Sergipe no ano de 1976, quando foi preso pela terceira vez. Nesse período ocupava cargo importante na hierarquia de sua organização clandestina dentro da qual era membro da comissão executiva. Durante o seu encarceramento no 28 BC aconteceu com ele o que sempre ocorre com aqueles sabem demais: são mais torturados. Os algozes militares conheciam o esquema de distribuição de responsabilidades e de informações entre os membros do partidão e de outras organizações clandestinas de esquerda. Não fora torturado nas suas primeiras prisões políticas. Nesse momento a coisa foi diferente. Foi submetido a todo tipo de tortura constante no repertório dos militares que participaram do seu suplício. Como resultado desse ordálio, perdeu a visão de ambos os olhos.
Assim, foi aposentado por invalidez, com o que passou a receber uma pensão. Requereu e obteve uma indenização de sessenta e oito mil na moeda da época junto à justiça, que foi em seguida revogada em instância superior do judiciário. Mais tarde, com os tempos e os ventos da Anistia, ganhou o direito a uma pensão mensal vitalícia. Não quis revelar os valores dessas suas fontes de renda. Pelo que pudemos observar, vive digna e modestamente em casa do bairro Santo Antônio.
Como era de se esperar, a prisão, as torturas e a perda da visão o marcaram de modo permanente. Criou algo como um ressentimento em relação a quem supostamente esteve na origem da famigerada Operação Cajueiro. De acordo com ele, essa operação militar ocorreu porque certo camarada comunista teria entregue toda a organização em Sergipe. Em todas as ocasiões em que pode falar publicamente, repete o mesmo relato.
Nessa história aparece um comunista chamado Sérgio, um contato da direção central do PCB para os estados de Sergipe e da Bahia. Esse Sérgio (naturalmente não sabe se o nome desse personagem era esse mesmo) lhe teria dito o seguinte: “Se fulano de tal abriu o bico na sua prisão em 1973, todos nós estamos fodidos”. Está convicto de que assim aconteceu e não admite pensar em outras possibilidades de como teria acontecido a referida operação realizada pela Polícia Federal em Sergipe e por militares oriundos da VI Região Militar em Salvador.
Foi absolvido pela Justiça Militar na Bahia, onde, pela primeira vez, foi levado ao IML Nina Rodrigues, que confirmou a perda total de sua visão. Em seguida, esteve em Belo Horizonte, cidade em que fez novos exames que não tiveram um diagnóstico diferente.
Um pouco mais tarde, com a restruturação dos partidos se filiou ao Partido dos Trabalhadores e concorreu para o mandato de vereador por Aracaju. Não conseguiu transformar o seu capital de militante político em cadeira na Câmara de Vereadores. Fez uma segunda tentativa de obter um mandato eletivo, dessa feita pelo Partido da Frente Liberal, um partido de direita, também sem sucesso.
Em 2018, a Operação Cajueiro completa quarenta e dois anos. Esse também é o tempo de sua cegueira. Disse-nos que lhe é impossível perdoar quem lhe provocou esse dano irreparável. Mas não consegue compreender duas coisas. A primeira é o fato de que o suposto delator, se fez a delação, fê-la debaixo de tortura. A outra consiste na informação de que a sua cegueira foi causada pela ação covarde de agentes das Forças Armadas.