Elites médicas e política

Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS

Certa vez, em entrevista ao jornalista Osmário Santos, o ex-deputado estadual Leopoldo Souza declarou que pensou em estudar Medicina para fazer a carreira de político. Essa era compreensão que se tinha/se tem da profissão médica, para aqueles que fazem o clientelismo político. Com efeito, nas sociedades em que predomina a política clientelística, o exercício da Medicina permite que médicos transformem redes de pacientes em redes de clientes ou de eleitores. Imagine você médico trabalhando por anos, a serviço da Secretaria Estadual da Saúde e de prefeituras, atendendo a pacientes que são economicamente de baixa ou nenhuma renda e de baixa escolaridade.

Essas atividades médicas geram laços pessoais de dívida pessoal dos pacientes para com profissionais da Medicina, mesmo que se trate de serviço público. Ou ainda reflita o leitor sobre médico que trabalha para empresas privadas e sindicatos com grande número de empregados e filiados. Nos dois casos, esses pacientes podem não ter ideia do que é ter direitos, entendendo a prestação de serviço médico como um favor – coisa que é, sutilmente ou não, reforçada por prefeitos, empregadores e lideranças sindicais de um modo geral. Era nisso que pensava o político mencionado acima. Não é demais lembrar que até hoje políticos contratam médicos para a prestar serviços médicos a seus eleitores, quando não usam a própria máquina pública para fins eleitorais. Mesmo que essa prática médica não seja bastante para conquistar um mandato eletivo, nem exclusividade de Sergipe, ela serve para o candidato dizer que tem um “serviço social” para mostrar. Evidentemente, esse não é o único caminho trilhado por médicos que fazem política partidária e nem todos os médicos da esfera pública e privada recorrem a essa estratégia para ingressar e permanecer na política.

Foi pensando nessas práticas médicas que nós lemos o dicionário biográfico de médicos sergipanos organizado por Antônio Samarone de Santana, Lúcio Antônio Prado Dias e Petrônio Andrade Gomes, publicado em 2009 (SANTANA, Antônio Samarone et al. Dicionário biográfico de médicos de Sergipe. Aracaju: Academia Sergipana de Medicina, 2009). O livro tem duzentas e cinquenta e cinco páginas e é todo de luxo (capa, contracapa e páginas). Os três organizadores são médicos e, salvo engano de nossa parte, apenas o professor universitário e servidor público do Ministério do Trabalho Antônio Samarone de Santana tem tido militância na política sergipana.

O livro está estruturado da seguinte forma: a) pequenos textos usados como apresentação do livro (Débora Pimentel: “Apresentação”; Luiz Antônio Barreto: “Dicionário Biográfico de Médicos”; Antônio Samarone de Santana: “Os Médicos Sergipanos”; Lúcio Antônio Prado Dias: “Lembranças que não fenecem”; Petrônio Andrade Gomes: “Dr. Augusto Leite na Medicina de Sergipe”); b) quatrocentos e vinte e um (421) verbetes biográficos de médicos, c) e mais quarenta (40) verbetes biográficos de médicos pertencentes à Academia Sergipana de Medicina, entre os quais estão os organizadores do livro. Como o leitor pode imaginar, os quatrocentos e vinte e um verbetes biográficos são a parte principal e mais importante do livro. Na construção dos verbetes biográficos os organizadores utilizaram três critérios, isto é, médicos vivos, falecidos e membros da Academia Sergipana de Medicina. Entre vivos e mortos, o livro contém verbetes biográficos de médicos sergipanos que aqui praticaram a Medicina, médicos sergipanos que se radicaram em outros estados e médicos de outros estados que em Sergipe se instalaram. O lapso temporal coberto pelo livro vai do século XIX ao XX e começos da atual centúria.

Esse é tipicamente um livro que serve como fonte para pesquisas acadêmicas. Certamente, o objetivo de seus organizadores foi aquele de resgatar a memória de um grande número de médicos sergipanos, fazendo-lhes uma homenagem em forma de livro. O livro traz em seu bojo dois tipos de fontes: fotos de pessoas, fotos de hospitais, médicos da Faculdade Medicina da Bahia, fotos de salas de cirurgia, foto de aula de anatomia e de eventos importantes na Medicina, e, verbetes biográficos apresentados em ordem alfabética. Quanto a esses verbetes biográficos, têm um problema: ninguém fica sabendo quem escreveu os tais verbetes. É verdade que, na parte chamada de “bibliografia”, fontes bibliográficas são citadas, além dos arquivos do Conselho Regional de Medicina do Estado de Sergipe, sindicato semelhante à OAB dos advogados. Temos a impressão de que as principais fontes utilizadas foram o dicionário biobibliográfico de Armindo Guaraná e as fichas com dados pessoais e profissionais existentes no sindicato referido.

O dicionário biográfico de médicos sergipanos traz muitas informações interessantes mesmo para quem não pertence à poderosa corporação médica. Ficamos sabendo, por exemplo, da participação de médicos sergipanos na Guerra do Paraguai. No dicionário, são referidos alguns desses médicos: Antônio Pancrácio de Lima Vasconcelos, Eugênio Guimarães Rebello, Eusébio Góes, José Ignácio Pimentel, Manuel Baptista Valadão, Manuel Lobo etc. Quando submarinos alemães torpedearam, em 1942, navios brasileiros e corpos foram trazidos pelas águas à Praia do Mosqueiro, em Aracaju, médicos sergipanos (Carlos Moraes de Menezes, Jessé Fontes, Pedro Soares, etc.) tiveram uma atuação importante no seu resgate e depois no acompanhamento da construção do Cemitério dos Náufragos, local ainda à espera de um memorial.

Uma vez que a Faculdade de Medicina da UFS foi inaugurada em 1961, não é difícil concluir que os médicos das famílias geralmente abastadas sergipanas eram treinados, principalmente, na conservadora Faculdade de Medicina da Bahia – exatamente como aconteceu com os bacharéis em Direito, depois de a Bahia ter criado sua faculdade de Direito com o fim do Império, mas com a diferença de a Faculdade de Medicina ter sido fundada em 1808. Como foram muitos os médicos formados na Bahia e que aqui não tinham o que fazer, muitos desses profissionais sergipanos se transferiram para outros estados, sobretudo São Paulo. Na história da Medicina em Sergipe, muitos médicos vieram da Bahia, de Alagoas etc. e aqui fincaram raízes.

O que contém cada verbete biográfico? Basicamente, dados pessoais e profissionais como data e local de nascimento, pertencimento a instituições sociais, locais de estudos e especializações, empregos principais, livros publicados etc. As informações são desiguais, ou seja, em alguns casos são bem pequenos perfis biográficos e em outros maiores. Vistos em conjunto, todos os perfis não são grandes. Existem também informações sobre aqueles que exerceram cargos políticos, obtidos por nomeação política e através de eleições. É isso que nos interessa nesse livro.

Certamente, não têm sido poucos os médicos que têm ocupado cargos políticos por nomeação. Como se sabe, existe uma reserva de mercado na máquina estatal para os médicos. Eles ocupam, geralmente, os ministérios e as secretarias da saúde do Estado federal, dos Estados Federados e dos Municípios. Existe uma crença ingênua na população segundo a qual eles sabem como administrar os problemas da saúde em qualquer nível estatal pelo simles fato de serem médicos. “Gestor da saúde tem ser médico”, dizem por aí. Não indicar um médico para a pasta da saúde significa não prestigiar essa corporação profissional. Nesse sentido, muitos foram os secretários da saúde no Estado em Sergipe. Citaremos alguns nomes que nos são mais familiares: Everton de Oliveira, José Machado de Souza, Lauro Augusto do Prado Maia e Lucilo Costa Pinto. Entre os secretários de estado ocupando pastas que não a saúde, eis aqui alguns nomes: Nestor Piva, Walter Cardoso, Iracema Barbosa Carneiro Leão e João Cardoso Nascimento Junior, É preciso acrescentar que muitos médicos têm ocupado cargos políticos que são geralmente ocupados através de eleições mas que, por causa de períodos autoritários da nossa política, foram simplesmente indicados.

A lista de médicos tendo ocupado cargos políticos eletivos não é extensa, se comparação for feita com os bacharéis em Direito. Mesmo assim, entre esses profissionais podem ser apontados governadores, senadores, deputados federais e estaduais, prefeitos e vereadores. Não é demais lembrar que, visto que os verbetes biográficos também cobrem o período da monarquia, esses mesmos cargos recebem outras denominações – as quais por sua vez, em alguns casos, foram mantidas com a época republicana (presidentes de província, intendentes, etc.) Eis a seguir a lista de muitos desses nomes de médicos que ocuparam postos eletivos por um ou mais mandatos e de médicos que fizeram da política a sua profissão.

Entre os governadores, mencionamos Felisbello Freire (o primeiro governador sergipano), Rodrigues Dória, Eronildes Carvalho, Augusto Franco e Lourival Batista; procurando não repetir os nomes daqueles profissionais que também foram governadores (o que vale para os demais citados adiante), foram senadores os médicos Augusto César Leite, Durval Rodrigues da Cruz, Lauro Dantas Hora,Gilvan Rocha, Francisco Rollemberg etc.; entre os deputados federais: o grande pensador social brasileiro Manuel Bonfim, Joviniano Joaquim de Carvalho (pai de Carvalho Neto) , etc.; entre os deputados estaduais: Marcelo Ribeiro, Airton de Mendonça Teles, Armando Domingues, Octávio Penalva, Edelzio Vieira de Melo, Eraldo Lemos; entre os prefeitos (Cleovansóstenes Pereira de Aguiar, Carlos Firpo, etc.; e entre os vereadores (Antônio Garcia Filho, Emerson Ferreira, Gonzaga, e muitos outros).

Voltando ao livro, queremos dizer que esse o tipo de trabalho que não envelhece, a exemplo do famoso trabalho pioneiro de Armindo Guaraná ou, mais recentemente, do livro com memórias de políticos produzido por Osmário Santos que tem tornado possível um considerado número de monografias, dissertações e teses acadêmicas. Apesar dos preconceitos de algumas pessoas, da mesma forma que precisamos conhecer mais os grupos subalternos sergipanos, também necessitamos saber sobre as suas elites dirigentes.

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