Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS
A primeira vez que ouvi alguém falar de Wellington Mangueira foi quando comecei meus estudos de Direito em 1973, através do também estudante Carlos Alberto Menezes, um ano mais adiantado do que eu. Ele se referia a Wellington Mangueira como “dialético”. O que ele queria dizer com esse adjetivo? Bom orador? Bom debatedor? Grande poder de persuasão? Alguma coisa por aí? O tempo foi passando e as minhas informações sobre Wellington Mangueira aumentaram, até que certo dia pedi uma entrevista a ele, o que aconteceu no Clube Cotinguiba – espaço onde na juventude frequentei diversos bailes e festas. Finalmente, durante os trabalhos da Comissão Estadual da Verdade, tive a oportunidade de me encontrar com ele em todas as sessões de oitivas de pessoas atingidas pelo regime militar brasileiro. Que opinião formei sobre ele? Bom sujeito, de raciocínio rápido e de papo envolvente.
Recentemente, foi publicado um livro sobre a vida de Wellington Mangueira, escrito pelo talentoso jornalista Mílton Alves Jr., que me presenteou com um exemplar (ALVES JR. Mílton. Continência a um comunista. Aracaju: EDISE, 2018). Aí resolvi escrever esse texto, meio resenha, meio artigo, para destacar alguns aspectos da vida desse ativista político brasileiro cuja militância comunista o levou para bem perto da loucura e da morte. Mas o ativista comunista nascido no ano de 1945 em Aracaju sobreviveu e está bem vivo vendendo saúde, presidindo a Fundação Renascer, instituição que cuida de adolescentes infratores da lei.
Quero inicialmente pôr em relevo que poucos meses depois do golpe militar de 1964, Wellington Mangueira foi expulso do Colégio Atheneu pela sua diretora Maria Augusta L. Moreira – num tempo em que ainda não fazia parte do PCB em Sergipe. Depois de uma palestra de militar do 28 BC para alunos do Ateneu, a diretora perguntou à plateia quem partilhava as ideias dos novos tempos trazidas pelo regime militar recém-instaurado, ele e outros colegas secundaristas (Alceu Monteiro, Abelardo Silva Souza, Jackson Figueiredo, Mário Jorge Vieira, Anderson Nascimento, Sílvio Santana Filho) mostraram a sua discordância. Por incrível que pareça, isso foi motivo para serem expulsos da tradicional instituição escolar. Wellington Mangueira, presidente do Grêmio Estudantil Clodomir Silva de 1963 a 1964, e seus colegas recorreram à Justiça e ganharam a causa. Descontente com o desfecho da história, a mencionada diretora decidiu demitir-se do cargo. Mesmo com a decisão a seu favor, Wellington Mangueira não conseguiu reintegrar-se ao Ateneu e se transferiu para o Colégio Arquidiocesano, uma escola católica. Filiou-se ao PCB em janeiro de 1966, ainda estudante secundarista.
Num tempo em que o movimento estudantil secundarista era mais importante do que o movimento universitário, Wellington Mangueira levou uma facada de um estudante secundarista num encontro político estudantil marcado para acontecer na Escola Laudelino Freire, em Lagarto, em 1967. O nome desse estudante é João Ferreira Lima, graduado no mesmo ano que eu e hoje procurador aposentado do município de Aracaju. De acordo com o relato do livro, naquele momento era prefeito de Lagarto o recém-falecido Rosendo Ribeiro, mais conhecido como “Ribeirinho”. Esse prefeito direitista, ao tomar conhecimento que o encontro estudantil era para eleger a nova diretoria da União dos Estudantes Secundaristas de Sergipe (USES), teria a participação de muitos comunistas, além de dois deputados estaduais de esquerda (Viana de Assis e Cleto Maia) que faziam oposição à ditadura militar, mandou retirar toda e qualquer infraestrutura necessária à reunião estudantil. Foi então que Wellington Mangueira fez um pronunciamento propondo a suspensão do encontro de Lagarto, sugerindo que o evento fosse transferido para Propriá ou Aracaju.
Foi carregado nos braços por seus colegas, quando sentiu algo como “fisgada” nas costas, até dar-se conta que estava sangrando, que recebera uma facada. João Ferreira, que era aluno direitista Colégio Pio X, foi encontrado a lavar a faca da tentativa de homicídio no banheiro, depois indo se esconder na casa do prefeito. Era a resposta de João Ferreira ao tapa que recebera de Wellington Mangueira, quando foi agredido verbalmente ao ser chamado de “preto, negro safado” por João “Papa-Doce”. A despeito de perder muito sangue e da dificuldade para obter cuidados médicos, Wellington Mangueira escapou com vida desse lamentável episódio.
Em 1968, ano a partir do qual os militares radicais ficaram no comando do regime militar, foi fundada a Universidade Federal de Sergipe e também no mesmo ano foi criado o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFS, para cuja presidência foi eleito o estudante de Direito João Augusto Gama. Na condição de estudante da Faculdade de Direito, Welington Mangueira foi ao encontro “clandestino” da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, no interior de São Paulo. Foi preso pela Polícia Militar de São Paulo e levado ao Presídio Tiradentes, juntamente com outros sergipanos que foram participar daquele que deveria ser o XXX Congresso da UNE, principal instituição representativa dos estudantes brasileiros posta na ilegalidade com o golpe militar de 1964.
Com a radicalização do regime militar à direita, Wellington Mangueira decidiu partiu para o exílio em Moscou em 1971, onde ficou até 1973. Que usos fez de seu tempo durante sua passagem pela União Soviética? Rigorosamente falando, ele fez estudos destinados a preparar elites comunistas de países do Terceiro Mundo, na então chamada Universidade de Amizade dos Povos Patrice Lumumba. Nessa instituição escolar, estudou Economia Política, Estudos Sociais e Língua Russa. Segundo o autor do livro, também concluiu Mestrado em Ciências Sociais na mesma universidade. Por incrível que pareça, decidiu voltar ao Brasil em 1973 quando o regime militar, ao combater os grupos de armados da oposição, se tornou mais violento, promovendo perseguições, prisões, desaparecimentos, torturas e mortes. Wellington Mangueira justificaria a sua volta ao Brasil com a notícia de uma suposta absolvição de seu caso na Justiça Militar brasileira. Voltou e logo foi preso em Aracaju e levado a Salvador. Foi nesse período que ele conheceu as piores torturas em quartel do Exército em Salvador. Sem que lhe fosse bem explicado, as autoridades militares deram a ele uma semana livre, fora das instalações castrenses, com o compromisso de voltar ao quartel uma semana depois. O que fez o ativista comunista, percebido pelos militares como perigoso quadro de elite treinado em Moscou para atuar no “partidão”?
Decidiu voltar a Aracaju. Na capital sergipana, foi aconselhado por seus parentes e seus camaradas a seguir para um segundo exílio, desta vez no Chile de Salvador Allende, país que, pela via eleitoral, parecia fazer uma transição pacífica para uma sociedade como Cuba. Com a ajuda de parentes e amigos, foi de Aracaju ao Rio de Janeiro, de onde seguiu até Porto Alegre. Da capital gaúcha deveria ir a Montevideo, no Uruguai, e de lá para Santiago. Na estação rodoviária porto-alegrense, foi detido por agentes da repressão. Antes de ser levado para o Rio de Janeiro, Wellington Mangueira conheceu novas sessões de tortura. Durante a viagem aérea foi ameaçado de ser jogado no mar. No Rio de Janeiro, foi brutalmente torturado até que, foi autorizado a voltar para Sergipe. Somadas as torturas sofridas em Salvador, Porto Alegre e Rio Janeiro, o ativista comunista admitiu ter chegado perto da loucura.
Wellington Mangueira não foi preso por ocasião da Operação Cajueiro, que corresponde à última onda repressiva dos militares em Sergipe. Mesmo assim, foi obrigado a ler uma carta na televisão que supostamente teria escrito com a qual renegava o comunismo e o consumo de maconha. Depois disso, o homem público Wellington Mangueira foi dirigente do Cotinguiba, exerceu o magistério secundarista, praticou advocacia empresarial, tentou sem sucesso mandatos eletivos de político e tem ocupado diversos postos de secretário de Estado e do município em Aracaju e no interior em governos de partidos diversos.
Para quem conhece um pouco a trajetória política de Wellington, sabe que nesse relato está faltando uma pessoa. Ela se chama Laura, sua esposa, que ele conheceu ainda adolescente e estudante no Ateneu e com quem está casado até hoje. Os dois são um dos muitos casais formados nos grupos de oposição armados ou não ao regime militar. Ela também se filiou ao PCB, em 1967, esteve com ele em Moscou, conheceu as prisões e as torturas praticadas pelo regime militar em diferentes cidades. Ela também sobreviveu ao regime militar. Os dois têm filhos e netos e vivem todos em Aracaju.