Religião e Política não se misturam, será?

Alexandre de Jesus dos Prazeres*
Bacharel em Teologia, Mestre em Ciências da Religião e Doutor em Sociologia

Nestes últimos dias, a comunidade internacional recebeu o anúncio da decisão do governo dos Estados Unidos de retirar suas tropas do Afeganistão. Tal medida ocorre em cumprimento ao acordo firmado no ano passado entre o então presidente Donald Trump e os líderes do Talibã. Todavia este acontecimento, refiro-me a retirada das tropas e os seus desdobramentos para o povo do Afeganistão, suscitou questionamentos acerca da junção entre formas extremadas de manifestações religiosas e o governo de países, os poderes políticos constituídos.

O Ocidente moderno encontrou um arranjo como esforço de preservar tanto o Estado quanto os direitos de grupos religiosos residentes nos países, ou seja, a separação entre Estado e religião. Porém a história da humanidade é o testemunho de que durante séculos várias civilizações do mundo tiveram a religião como elemento legitimador dos seus sistemas políticos. Impérios como o do Egito antigo e o Babilônico eram concebidos como cosmológicos, representantes de uma ordem transcendente, um pequeno cosmo ou representação da dimensão cósmico e primordial na qual os deuses existiam. Os governantes, nestes sistemas políticos, eram concebidos como filhos ou representantes dos deuses neste mundo, isto lhes garantia status de divindade. Esta mesma realidade é observada na Roma antiga, onde o imperador recebeu o título de augustus (divino) e de pontifex, construtor de pontes, alguém que une mundos. Algo semelhante se associa ao fundamento do poder régio durante a Idade Média, os reis possuíam um direito divino à soberania.

O que muda nessa estrutura fundamental da ordem política na atualidade é que o elemento religioso explícito foi secularizado, ideologias modernas passaram a desempenhar o papel de uma representação transcendental, a verdade transcendente que a sociedade passa a representar. O filósofo Eric Voegelin afirma que tanto as civilizações do passado quanto as atuais se compreendem como representantes ou defensoras de uma verdade, porém esta verdade transcendente, na atualidade, assumiu formas ideológicas. Voegelin formulou os conceitos de “representação existencial” e de “representação transcendental” como auxílios à análise dos vínculos históricos entre religião e política nas sociedades tradicionais e como determinadas noções teológicas e religiosas se constituíram de forma secularizada em conceitos jurídicos e políticos nas sociedades modernas.

A respeito da situação particular do Afeganistão sob o regime dos talibãs, destaco dois pontos. O primeiro diz respeito ao modo como diversas sociedades que se constituíram sob influência da religião islâmica compreendem as relações entre o governo e a religião. Uma compreensão na qual o sistema religioso vem primeiro e o Estado é apenas um de seus instrumentos, o Estado islâmico. O segundo, precisamos entender que de modo geral isto funciona bem para eles, mas que pode se constituir em sérios problemas quando formas extremadas de interpretar os princípios religiosos se tornam hegemônicas entre os ocupantes das funções políticas. O Islam sempre fez parte da cultura do Afeganistão, quem desejar ter uma noção sobre isto leia o livro “O caçador de pipas” ou, se preferir, assista o filme baseado no livro. Este romance oferece uma visão da sociedade afegã anterior à invasão soviética e no que ela se tornou após expulsão dos soviéticos pelas milícias talibãs que foram treinadas por militares dos Estados Unidos.

O tipo de religião islâmica defendida pelos talibãs não representa a totalidade do Islam, mas se constitue em uma forma extrema, fundamentalista de compreender esta religião. E o fundamentalismo é um fenômeno presente em todas as religiões, sendo no geral inofensivo quando a sociedade possui mecanismos para o conter, limitá-lo a esfera dos que professam as suas religiões sob tal ótica. No Ocidente cristão, o Estado democrático de direito se configurou como Estado laico, este é o mecanismo que contém e impede que formas religiosas extremadas assumam o controle do Estado e sejam impostas a sociedade.

*Docente permanente do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião (PPGCR/UFS)

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