Rio São Francisco em Sergipe: patrimônio de notável valor paisagístico, histórico e turístico

Amâncio Cardoso (1)
Professor de História do Instituto Federal de Sergipe

Um dos patrimônios brasileiros de grande importância e significado inconteste é o rio São Francisco. O rio da integração nacional banha e atravessa os estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Ele percorre cerca de 2.700 Km, desde a serra da Canastra, no município de São Roque de Minas-MG até a foz, encontrando o oceano Atlântico entre os estados de Alagoas e Sergipe.

No trecho sergipano, o rio São Francisco banha os municípios de Brejo Grande, Ilha das Flores, Neópolis, Santana do São Francisco, Propriá, Telha, Amparo do São Francisco, Nossa Senhora de Lourdes, Canhoba, Gararu, Porto da Folha, Poço Redondo e Canindé do São Francisco.

O topônimo “São Francisco” é uma homenagem ao santo católico Francisco de Assis, nascido em 04 de outubro. A nomeação ocorreu em 1501 após a chegada nesta data dos viajantes europeus Américo Vespúcio e André Gonçalves à foz do rio.

Antes disso, algumas etnias indígenas que habitavam às margens do São Francisco o chamavam de Pará-pitinga (o rio branco). Por sua vez, os cronistas portugueses abreviaram o étimo indígena registrando Opará, ou “o grande rio”. Essa hipótese etimológica é defendida por Teodoro Sampaio (1855-1937), autor de O Tupi na Geografia Nacional, de 1901. (2)

Entretanto, antes mesmo dos índios, as margens sanfranciscanas foram povoadas por paleoíndios. Grupos humanos nômades que viviam da caça, pesca e coleta, a exemplo dos grupos da Cultura Canindé, que viveram às margens sergipanas do São Francisco entre 9.000 AP e 1.280 AP (Antes do Presente). Eles buscavam alimentos nos platôs ou terraços à beira rio e deixaram vestígios em forma de fogueiras, necrópoles, artefatos líticos, cerâmicos e registros rupestres, testemunhando a antiquíssima presença humana na região de Xingó, em Canindé do São Francisco-SE. (3)

Muito tempo depois, no século XVI, os portugueses invadiram, conquistaram e colonizaram as terras povoadas por várias etnias indígenas. A partir de então, o vale do São Francisco foi ocupado por fazendas e currais de gado. Sobre este aspecto, assim registrou em 1808 o memorialista Dom Marcos Antônio de Souza (1771-1842): “há duzentas fazendas de gado vacum e cavalar”, numa área entre Propriá e Porto da Folha (4). Por conta da cultura tradicional da pecuária bovina, o São Francisco ficou também conhecido como o Rio dos Currais, onde vicejou a economia da “Civilização do Couro”, como a denominou o historiador Capistrano de Abreu (1853-1927).

A importância geográfica, histórica, econômica e cultural do grande rio foi confirmada em 1845, quando ele foi abonado com um longo verbete no Dicionário Descritivo do Império do Brasil, do militar francês Milliet de Saint-Adolphe. Este registro patenteia o significado inconteste do rio São Francisco para a formação geopolítica do Brasil. (5)

Por conta desses e de outros registros, o imperador D. Pedro II (1825-1891) visitou o trecho entre a foz e a cachoeira de Paulo Afonso em 1859, subindo o leito numa embarcação a vapor, visitando povoações da margem sergipana do São Francisco, como Vila Nova (Neópolis), Propriá e Curral de Pedras (Gararu) (6). Sua majestade já havia autorizado expedições oficiais ao vale sanfranciscano para mapear sua viabilidade econômica.

Assim, no século XIX, o rio São Francisco foi visitado por expedições de caráter científico. A partir de então, o baixo São Francisco Sergipano recebeu a presença de viajantes cientistas/naturalistas (engenheiros, médicos, estudiosos da geografia, geologia, botânica, zoologia e paleontologia). Eles eram tanto estrangeiros quanto brasileiros, e tinham como principal objetivo pesquisar e relatar sobre a fauna, a flora, a paisagem e os costumes locais.

Um dos cientistas naturalistas que navegaram pelo São Francisco Sergipano, em 1838, foi o médico, zoólogo e botânico escocês, George Gardner (1812-1849). Ele descreveu a foz do São Francisco, a paisagem de suas margens e visitou Neópolis, Propriá e Ilha de São Pedro. Nesta ilha, no município de Porto da Folha, Gardner permaneceu quinze dias anotando os costumes dos índios ali aldeados. Seus relatos foram publicados na Inglaterra em 1846. (7)

Já em 1854, outro reconhecido viajante percorreu o São Francisco de Sergipe. Foi o engenheiro alemão Heinrich Halfeld (1797-1873). Ele realizou uma minuciosa exploração pelo rio da integração nacional e o descreveu légua por légua, entre 1852 e 1854, a serviço do governo imperial. Suas pesquisas resultaram no “Atlas e Relatório do Rio São Francisco”, publicado em 1860. Esta obra ainda é uma referência substancial nos estudos sobre a região. (8)

Um outro pesquisador estrangeiro que também explorou o São Francisco Sergipano foi o naturalista canadense Charles Hartt (1840-1878). Ele pesquisou a região como membro da famosa “Expedição Thayer”, de 1865. Em 1867, na região entre Propriá e Curral de Pedras (atual Gararu), Hartt encontrou e descreveu árvores com densa folhagem verde nas margens dos rios da bacia. Seus estudos, publicados nos Estados Unidos em 1870, serviriam, por exemplo, para ações de reflorestamento da mata ciliar degradada em nossos dias.

Mais um famoso cientista, agora brasileiro, visitou o São Francisco Sergipano nos oitocentos: o eminente engenheiro baiano Teodoro Sampaio (1855-1937). Entre agosto e dezembro de 1879, ele viajou por todo o vale como membro da Comissão Hidráulica do Império, cuja finalidade era realizar estudos sobre o potencial comercial e de navegação do rio São Francisco. Ao visitar Vila Nova (Neópolis), o engenheiro identificou a presença do grés friável; uma argila arenosa de que se fazem louças e outros artigos utilitários, e também utilizada na construção civil. (9)

Já em meados do século XX, outra importante expedição científica no São Francisco foi coordenada pelo sociólogo norte-americano Donald Pierson (1900-1995). Ele e sua equipe visitaram a região entre os anos de 1952 e 1960. A viagem rendeu substancioso relatório antropológico intitulado “O Homem do Vale do São Francisco”. Esta obra é considerada um substancioso legado às Ciências Humanas e Sociais no Brasil, tornando-se referência obrigatória para os estudiosos do Velho Chico desde 1972, quando foi traduzida e publicada em livro. (10)

A partir de então, as políticas públicas passam a debater e a atuar sobre as populações tradicionais que habitam o vale do São Francisco, tais como aldeias indígenas, comunidades de remanescentes quilombolas e de pescadores. Em Sergipe, por exemplo, esses povos tradicionais estão representados pelos Xokó, remanescentes que, com muita luta e resistência, reconquistaram no final do século XX suas terras nas aldeias da Ilha de São Pedro e da fazenda Caiçara, situadas no município de Porto da Folha. (11)

Os povos tradicionais ainda convivem, ou são afetados negativamente, com projetos de obras de infraestrutura no vale do São Francisco. Exemplo disso foi a instalação e operação de uma das nove usinas hidrelétricas, a UHE-Xingó, em Canindé do São Francisco, no ano de 1994.

Para compensar os impactos ambientais da obra, foi iniciado o projeto de salvamento arqueológico realizado pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), entre 1988 e 1997. Esse projeto surgiu como estratégia para manutenção da pesquisa e a preservação do patrimônio arqueológico no município de Canindé e entorno. Esta ação resultou na criação, em 2000, do Museu Arqueológico de Xingó (MAX), também em Canindé-SE, administrado pela UFS em parceria com a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF). (12)

Um ano depois da inauguração do MAX, o trecho sergipano do rio São Francisco foi reconhecido, pelo governo do Estado, como monumento paisagístico e turístico, através da lei nº 4.491, de 21 de dezembro de 2001. Esse ato de “patrimonialização” foi o primeiro passo para o incremento do turismo na região. (13)

A partir de então, foi possível o desenvolvimento do turismo de lazer e histórico-cultural na área. Assim, passeios náuticos pelo leito, pelos canyons e pela foz, além de banhos fluviais, visitas ao MAX e aos sítios arqueológicos, como também à Grota do Angico (onde ocorreu o extermínio do grupo de cangaceiros de Lampião em 1938), passaram a ser ofertados por operadoras e agências de turismo. (14)

Aliado a isso, realizaram-se obras de infraestrutura, a exemplo de saneamento básico e de pavimentação de rodovias; construíram-se equipamentos, como hotéis, pousadas e restaurantes; produziram-se eventos para promoção dos produtos culturais (artesanato, culinária e folclore) e de produtos agrícolas de áreas irrigadas (frutas e legumes); e por fim, fizeram-se investimentos na qualificação de profissionais do turismo para atender à demanda e aproveitar o potencial da região ribeirinha.

Neste sentido, foi criado o polo turístico do Velho Chico, composto por dezessete municípios, para auxiliar o planejamento e gestão estratégica da atividade na área, com o intuito de cumprir o Programa de Regionalização do Turismo, do Ministério do Turismo.

Portanto, diante da magnitude desse patrimônio natural que nosso Estado também possui, os sergipanos, visitantes e turistas precisam melhor conhecer, usufruir e preservar um dos maiores bens e atrativos turísticos do Brasil, que é o rio São Francisco. Ele deve ser salvaguardado, garantindo seu uso pelas futuras gerações. Assim, o Velho Chico continuará a ser o notável patrimônio paisagístico, socioambiental e histórico-cultural que banha a região norte de Sergipe.

1 Professor dos cursos de Turismo do IFS-Campus Aracaju.
2 SAMPAIO, Teodoro. O Tupi na Geografia Nacional. 5. ed. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1987. p. 296.
3 CARVALHO, Fernando Lins de. A Pré-História Sergipana. Aracaju: UFS, 2003. p. 55-60.
4 SOUZA, D. Marcos Antônio de. Memória sobre a Capitania de Sergipe. Aracaju: SEC, 2005. p. 88.
5 SAINT-ADOLPHE, Milliet de. Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Império do Brazil. Paris: J. P. Aillaud, 1845. p. 539-542. Tomo 2º.
6 CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 137
7 GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp. 1975. p. 72.
8 HALFELD, H. Atlas e relatório concernente à exploração do Rio São Francisco. Rio de Janeiro: Typographia Moderna de Georges Bertrand, 1860.
9 SAMPAIO, Teodoro. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 67.
10 Pierson, Donald. O Homem no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: Suvale, 1972. 3 Tomos.
11 XOKÓ. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xoko. Acesso em 30/08/2021.
12 O MAX. Disponível em: https://max.ufs.br. Acesso em: 30/08/2021.
13 CARVALHO, Ana Conceição; ROCHA, Rosina (Org.). Monumentos Sergipanos: bens protegidos por lei e tombados através de decretos do governo do Estado. Aracaju: Sercore, 2007. p. 146.
14 SERGIPE. Cartilha de Orientação: Mapa do Turismo. Aracaju: Secretaria de Estado do Turismo, 2020.

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