Prof. Dr. Antônio Carlos dos Santos (UFS/CNPq)
Já virou um truísmo dizer que estamos passando por momentos difíceis, sombrios e perigosos. Ainda assim, talvez valha a pena evocar um exemplo.
No final de 2020, a Fundação Palmares, que tem como responsabilidade primeira valorizar a cultura negra e combater todo o tipo de racismo, publicou em seu site a retirada de 27 nomes da sua longa lista. Segundo a Folha de São Paulo (3/12/2020), dentre esses nomes, constam pessoas das mais diferentes órbitas política e cultural, como a escritora Conceição Evaristo, a cantora Elza Soares, a ambientalista Marina Silva, o ex-ministro da cultura Gilberto Gil e o cantor Milton Nascimento. Os argumentos que justificariam esse revisionismo, segundo a Fundação, são patéticos. De forma resumida: os banidos da lista não trouxeram nenhuma contribuição para a cultura brasileira. Esse movimento, que pode começar com o afastamento ou a diminuição dos registros do passado, aparentemente com ações simples e inofensivas, pode terminar em apagamento e esquecimento. Como no atual governo tudo parece turvo e impreciso, felizmente há sempre quem provoque a lembrança.
E foi com a perspectiva de marcar e lembrar os oitenta anos de Beatriz Góis Dantas que as professoras Eufrázia Santos e Sílvia Dantas organizaram e publicaram o belo livro em homenagem à matriarca da antropologia sergipana. Não poderia haver momento mais oportuno. Este livro, em si, já se tornou um objeto de resistência científica em meio ao desprezo pela ciência, à política de negacionismo e ao pouco valor à própria cultura. Ele é uma ode produzida por amigos, dedicada a quem aprendeu e ensinou a fazer ciência e a produzir conhecimento novo e transformador. Nestes tempos lúgubres, ele é uma lufada de alegria e esperança.
“Os caminhos da pesquisa antropológica” apresenta treze capítulos, divididos em três partes distintas, além do prefácio, escrito por Sílvia Dantas, e um lindo poema da professora Maria Lúcia Dal Farra sobre a homenageada, que serve de portal para o leitor entrar na intimidade dos textos. A especialista em Florbela Espanca brinca com as palavras ao desenhar a versatilidade dos objetos de pesquisas da profa. Beatriz, a sua facilidade em transitar de um tema a outro, ao mesmo tempo que se desloca pelos quatro cantos do estado de Sergipe, até onde o seu olhar lhe permite alcançar, para transformar em objeto de análise. Daí, suponho, o título de seu texto bastante sugestivo: “a missionária da memória”. Na sequência, o leitor encontrará o prefácio, que assume a função da introdução da obra. Começa com uma bela descrição da filha, Sílvia Dantas, após chegar em casa e se deparar com a mãe, entusiasmadíssima com o novo objeto de pesquisa. Certamente Sílvia percebeu a encarnação daquilo que Max Weber chama do cientista vocacionado nato, que se entrega de corpo e alma a seu objeto de pesquisa e que em tudo que vê, olha sob a perspectiva de algo a ser conhecido e estudado cientificamente. Não há como não se encantar com essas professoras inspiradoras.
A primeira parte da obra, intitulada “trajetória acadêmica e a paixão pela antropologia”, é dividida em três capítulos distintos e escritos pelo prof. Ibarê Dantas (UFS), esposo da homenageada, pela profa. Maria Laura Calvalcanti (UFRJ) e pela profa. Eufrázia Santos (UFS).
O primeiro texto é, literalmente, “o percurso de Beatriz”. Nele, prof. Ibarê Dantas narra a história da octogenária desde as suas primeiras letras até o seu reconhecimento profissional por parte de seus pares. Entender a sua trajetória intelectual ajuda o leitor a compreender também suas escolhas de objeto de pesquisa, seus desafios, suas perspectivas metodológicas, especialmente numa época em que a pesquisa era coisa rara por essas bandas. No final do texto, há uma inversão do dado, como se fosse um jogo próprio dialético. Quem escreve a homenagem é quem se sente homenageado por tê-la por perto: “é esta mulher (…) produtiva, amada e reconhecida, a quem reverencio com a alma agradecida, honrado e feliz por sua companhia, augurando vida longa com saúde e paz. Beatriz, minha eterna gratidão” (p. 44).
O segundo texto aponta para a importância da produção intelectual da homenageada não apenas para Sergipe, mas para a antropologia brasileira. O foco de sua análise é demonstrar como a pesquisadora Beatriz partia de temas singularmente sergipanos e, dali, pensava questões universais que interessavam e ajudavam a compreender o Brasil. A autora fornece dois exemplos extraídos das duas obras mais expoentes da homenageada, “Vovó nagô, papai branco” e “A Taieira de Sergipe”. Da primeira, põe por terra a suposta hierarquia e pureza entre as religiões de origem africana no Brasil; da segunda, demonstra que, numa época em que os estudos do folclore e das ciências sociais eram estanques e distantes dos centros universitários, “A Taieira de Sergipe tornou-se a dança tradicional sergipana nacionalmente conhecida, e sua autora recebeu também o reconhecimento de estudiosos consagrados no campo dos estudos do folclore, da sociologia e antropologia da época” (p.63).
O terceiro e último texto desta parte é bastante esclarecedor no sentido de demonstrar as origens intelectuais da homenageada e o ambiente a partir do qual despertou nela o gosto pela pesquisa antropológica numa época em que esta atividade não fazia parte propriamente da carreira acadêmica universitária. Vê-se a importância dos mestres inspiradores, das referências que foi abraçando ao longo da graduação e, sobretudo, das oportunidades profissionais desafiadoras, seja como docente, seja nas atividades administrativas. Neste sentido, arremata a autora: “a excelência de seus trabalhos acadêmicos foi responsável pela inserção da UFS no cenário das Ciências Sociais brasileiras, fazendo-se presente nos principais fóruns de discussão da área” (p.98).
A segunda parte do livro, intitulada “caminhos e desafios da pesquisa antropológica”, é composta por sete textos que cobrem quase todas as áreas de interesse da homenageada. Ela começa com a presença do amigo e antropólogo, Luiz Mott (UFBA), parceiro no diálogo há 40 anos. Ele ressalta três talentos da homenageada: a pesquisadora, a professora e a ativista cultural. Na sequência, o leitor se depara com o texto de Osvaldo Meira Trigueiro (UFPB), que dá relevo à importância de Beatriz Dantas nos debates que ocorreram nos Encontros Culturais de Laranjeiras. Logo a seguir, lê-se o texto de Terezinha Alves de Oliva, que foi aluna da homenageada, e que traça a sua herança acadêmica das questões que envolvem a preservação de patrimônio cultural. No próximo texto, o leitor tem a oportunidade de conhecer o lado museóloga da profa. Beatriz, com quem a profa. Verônica Maria Menezes Nunes aprendeu esse ofício e foi uma de suas maiores discípulas neste quesito. Na sequência, os professores Diogo Monteiro e Kléber Rodrigues, que foram estudantes de história da UFS, hoje doutorando e mestre, narram como aprenderam a perceber a lacuna de um objeto de pesquisa desde o ensino médio, despertando, na Universidade, para outra visão sobre o índio no livro didático, com constantes estímulos de pesquisa por parte da homenageada. Nesta parte, o leitor entenderá que a profa. Beatriz, aposentada há vários anos, continua a formar e a inspirar novas gerações de pesquisadores, em várias matizes da história e da antropologia. A sessão termina com dois textos que dialogam com as pesquisas de Beatriz Dantas, escritos por Vagner Gonçalves da Silva (USP), que dá ênfase à importância dos terreiros enquanto lócus civilizatório na formação da cultura nacional, e Léa Freitas Peres (UFMG), que destaca os aspectos festivos das procissões religiosas entre Brasil e Portugal.
A terceira e última parte do livro apresenta três depoimentos primorosos sobre a homenageada.
O primeiro deles é de Peter Fry, coorientador da dissertação de Beatriz Dantas na Unicamp, defendida em 1982. Ele retoma em parte o que havia escrito no prefácio ao clássico “Vovó nagô, papai branco”, destacando a interpretação original da autora. Segundo ele, enquanto os antropólogos se debatiam em atribuir aos terreiros como foco de resistência dos negros sob a dominação branca, Beatriz Dantas revelou-se arguta ao defender a tese segundo a qual esse processo era muito mais complexo do que se imaginava e que as religiões de matriz africana sofreram uma série de alianças e conflitos que se misturam e se entrecruzam aspectos religiosos, políticos e sociais, caindo por terra eventual pureza religiosa baiana. Assim, arremata Fry: “Beatriz Góis Dantas enxergou claramente que a formação do campo religioso afro-brasileiro só poderia ser entendida quando vista no contexto mais abrangente da sociedade brasileira como um todo” (p. 248/249).
O segundo depoimento é de Manuela Carneiro da Cunha, orientadora de Beatriz Dantas. Ela pontua vários momentos da relação profissional entre orientadora e orientanda, e um deles é particularmente tocante. Registra a Mestra em relação à pupila: “quando Beatriz apresentou seu trabalho na Unicamp, e que a sua qualidade ficou evidente, foi-lhe proposto que transformasse o que ela estava submetendo como um mestrado, sem trabalho adicional, em uma tese de doutorado. Beatriz recusou. Tinha saído de licença da UFS para obter um mestrado, argumentou” (p.251). Esse episódio aponta para o grau de seriedade da homenageada, que sempre a marcou, e que reiteradas vezes é lembrada por seus ex-alunos e amigos.
O terceiro e último é escrito por Maria Thereza Camargo (USP) que, aos 93 anos, relembra 40 anos ininterruptos do Encontro Cultural de Laranjeiras e de amizade para com a homenageada. Ela faz um repertório das pesquisas de Beatriz Dantas, particularmente, no campo dos fazeres populares, e relembra uma cena na qual demonstra o olhar atento da pesquisadora: “quando de uma de suas visitas a São Paulo, você fotografando uma toalha que lhe mostrava de renda de Veneza, buscando, certamente, um detalhe que pudesse sugerir influência nas rendeiras sergipanas” (p. 256). Ou seja, nada escapava ao olhar atento da profa. Beatriz Dantas, mesmo numa visita a uma amiga.
Cuidar da memória é uma lição cultural que aprendemos com os gregos antigos, a começar por Homero. Afinal, o que fez Ulisses senão lutar para manter a palavra, as histórias, os cantos que conferem a ele e a seus amigos da viagem a lembrança do passado e a esperança de que possam voltar, inteiros, à Ítaca?
Mas, em tempos sombrios de negacionismos, precisamos manter acesa a chama da memória e lutar contra os seus riscos. Um deles é o apagamento de pessoas ou fatos da história. Negar fato ou dificultar a sua reconstituição pode chegar até ao impedimento da lembrança. Isso não se dá apenas nos manuais da história, substituindo antigos por novos nomes, como se a narrativa, por si só, resolvesse a questão. Como sustenta Paolo Rossi, “apagar também tem a ver com esconder, ocultar, despistar, confundir os vestígios, afastar da verdade, destruir a verdade” (2010, p.32). Ora, como se luta contra esse tipo de esquecimento? O livro em homenagem a profa. Beatriz Dantas, mais uma vez, é exemplar.
Quando, no final dos anos 70, explodiram os conflitos fundiários entre os índios Xokó e a família Brito, de Propriá, a Funai ficou impossibilitada de atuar em defesa dos índios porque no século XIX e início do XX, houve um processo de invisibilização da indianidade Xokó em cujos documentos jurídicos constavam apenas a denominação de “caboclos” ou “camponeses”. O que se dizia era: “em Sergipe, não há índios”. Nesta época, a profa. Beatriz Dantas estava em Campinas e ficou sabendo do agravamento daqueles conflitos fundiários. Guardiã da memória dos documentos oficiais, por ocasião em que organizou o Arquivo Público do Estado de Sergipe (Apes), percebeu que naquele órgão havia documentos suficientes para demonstrar que a Ilha de São Pedro pertencia aos índios Xokó. A partir desse momento, mobilizou uma rede de relações intelectuais que passava desde a Diocese de Propriá, na pessoa de Dom José Brandão de Castro, pela sua orientadora, Manuela Carneiro da Cunha, a Comissão Pró-índio de São Paulo, até o jurista Dalmo de Abreu Dallari. O documento histórico foi fundamental para a batalha jurídica. Em 1980, os Xokó foram reconhecidos como verdadeiros donos daquele lugar, voltaram às suas terras e lá permanecem até hoje. Esta luta contra o apagamento poderia ter terminado aí. Mas ela serviu de modelo para outras lutas, inclusive, para a institucionalização do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (CEstA) da USP. Doravante, os documentos históricos passariam a ser fundamentais para a defesa dos direitos territoriais dos índios.
Enfim, tempos de esquecimentos, apagamentos, cancelamentos, dentre outros, teria arma mais poderosa do que a ação do cientista? Nesta época de negacionismos científico e de feminicídios, teria momento mais oportuno para homenagear essa antropóloga sergipana por meio deste livro? Ele é a prova documental de que Beatriz Dantas está no panteão das grandes pensadoras brasileiras.
Aprendamos com ela!