José Vieira da Cruz – Historiador, professor da UFS e sócio do IHGSE
As discussões, disputas e apropriações sobre o Golpe civil-militar de 1964, sessenta anos depois, persistem como um espectro que assombra a sociedade e as instituições políticas brasileiras. Neste ano – premido pelas polarizadas eleições de 2022, pela tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 e pela opção do governo federal de não realizar atos, cerimônias e/ou (des)comemorações críticas acerca do golpe em 2024–, a necessidade de discuti-lo é ainda maior, tanto pelo acontecimento histórico em si quanto pelo dever cívico de pensar o presente e o futuro da democracia em nosso país.
A respeito, penso ser oportuno resgatar a mensagem da dedicatória de abertura do livro “Tutela Militar em Sergipe”, esta obra de autoria de Ibarê Dantas, publicada em sua primeira edição em 1997, além de precoce oferece um balizado e denso estudo sobre o tema. A epígrafe utilizada por Dantas é de autoria do filósofo Paulo Sérgio Rouanet, que destaca “[que] quem não pode lembrar o passado não pode sonhar com o futuro e portanto não pode criticar o presente” ( Folha de São Paulo, 01/08/1995, p.7).
Lembrar o passado, compreender o presente e pensar o futuro, portanto, são condições essenciais do exercício de cidadania, soberania e autonomia das sociedades contemporâneas. Pressupostos que, não se resumem aos conteúdos, aulas e debates de história e dos historiadores, pois devem envolver a todo(a)s independente da classe, gênero, etnia, raça e/ou opção religiosa.
Dito isso, dentre as violações estabelecidas pelo golpe de estado de 1964 estão a supressão de garantias de direitos individuais e coletivos; a intervenção, fechamento e extinção de partidos, sindicatos, associações, movimentos do campo e movimentos de educação e de cultura popular; interferência em instituições de ensino superior e em entidades estudantis, entre outros. Em termos concretos, o golpe, desdobrado em uma ditadura civil-militar (1964-1985), resultou em graves prejuízos a democracia, a liberdade de expressão e a formação política e humanista dos brasileiro(a)s,
Em Sergipe, a exemplo, o movimento estudantil universitário – juntamente com outros setores da sociedade civil –, entre a década de 1950 e meados dos anos de 1960, envolveu-se em debates nacional-desenvolvimentistas, reformistas e de educação e cultura popular. Naquele contexto, havia no estado apenas instituições de ensino superior isoladas e dispersas.
Desta forma, por ocasião do golpe de 1964, os estudantes universitários estavam representados pelos centros e diretórios acadêmicos de suas respectivas faculdades/escolas superiores e por uma entidade estadual: a União Estadual dos Estudantes de Sergipe (UEES). Essa entidade, entre 1953 até as vésperas do golpe, atuou na defesa da criação de uma universidade no estado, reivindicando/administrando/captando recursos em favor do restaurante e de casas de estudantes universitário(s), na campanha do petróleo é nosso, na campanha da legalidade em favor da posse do presidente João Goulart, nas ações do: Centro Popular de Cultura (CPC da UEES) , Movimento de Educação de Base (MEB), Movimento de Cultura Popular (MCP), em grupos de teatro, e de cinema, entre outras experiências, movimentos e debates.
Tanto os posicionamentos políticos quanto as experiências das quais os estudantes universitários tomaram parte – individualmente ou através de suas entidades representativas –, a partir do golpe civil-militar de 1964 foram duramente interrompidos. Em razão dele, lideranças foram presas, processadas e tiveram direitos cerceados.
Ao passo que as entidades estudantis sofreram intervenção – Lei 4.464 de 9 de novembro de 1964 (Lei Suplicy). Em razão dessa legislação, a UEES foi transformada em Diretório Estadual de Estudantes de Sergipe (DEES) – subordinado ao Conselho Estadual de Educação e ao MEC.
Anos depois, o Decreto-lei 228 de 28 de fevereiro de 1967 (Decreto Aragão), extinguiu a DEES e as entidades congêneres. Esta norma também incorporou os bens e imóveis de entidades semelhantes ao patrimônio das universidades federais então existentes nos estados – transferência que só ocorreria em Sergipe em 1968, quando da criação da Universidade Federal de Sergipe (UFS), em 15 de maio de 1968.
Nesse intervalo de tempo, a ausência de um órgão de representação estadual dos estudantes universitários só veio a ser suprida com a criação do Diretório Central dos Estudantes (DCE/UFS) em meados de 1968. Entretanto, a rearticulação ocorrida a partir da eleição da primeira diretoria do mencionado Diretório Central, no mesmo ano de sua criação, deparou-se com a prisão dos estudantes que participaram do Congresso da UNE em Ibiúna/São Paulo, e, no ano seguinte com os processos, cassações e cerceamentos de direitos impostos pelo Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968 (AI-5) e pelo Decreto-Lei 477 de 26 de fevereiro de 1969.
O recrudescimento da ditadura, tanto retomava as arbitrariedades contra os estudantis secundaristas e universitários perseguidos desde o golpe de 1964, como cerceava direitos e impunha perseguições aos estudantes que haviam se somado ao movimento entre 1964 e 1968. No primeiro grupo, a título de exemplo, situamos os processos movidos contra Maria Zelita Correia e José Alexandre Filizola Diniz – lideranças estudantis que atuaram junto a UEES, CPC e/ou MCP nos primeiros anos da década de 1960.
No segundo grupo, registramos a lista das lideranças estudantis que tiveram seus direitos ameaçados e/ou cerceados por conta de terem participado de atos, ações e/ou mobilizações estudantis nos quatro anos seguintes ao golpe. Dentre estes estudantes estavam: Antonio Jacinto Filho, Benedito Figueiredo, Carlos Cleber Nabuco Teixeira, Elias Hora Espinheira, Jackson Sá Figueiredo, João Augusto Gama, João de Deus Góis, Jonas da Silva Amaral Neto, José Anderson Nascimento, José Sérgio Monte Alegre, Josefa Lorindo Alves, Mario Jorge Menezes Vieira, Moaci Soares da Mota, Paulo Parrocho Nou, Wellington Dantas Mangueira Marques, Antonio Vieira da Costa, Dilson Menezes Barreto, Laura Maria Tourinho Ribeiro, Elvidina Macedo de Carvalho, Janete Macedo de Carvalho, Hélio Araujo Oliveira, Ilma Menezes Fontes, José Alves Nascimento, José Cortês Rolemberg Filho, Maria Janete Sá Figueiredo, Francisco Carlos Nascimento Varela, José Jacob Dias Polito, Elze Maria dos Santos, Hemdricks Johannes Sprabel, João Bosco Rolemberg Côrtes, Paulo Afonso Almeida, Júlio César Regis Dantas, Sílvio Santana Filho, Zenaide Rosa Sobral e José Ibarê Costa Dantas.
Em Sergipe, além das prisões, processos e cerceamentos de direitos de participantes e de lideranças estudantis, a situação dos bens e imóveis da UEES/DEES é um capítulo controverso, embaraçoso e, para o juízo de muitos, inconcluso. Em particular, a existência de um terreno pertencente à entidade, localizado em uma região valorizada de Aracaju é bastante emblemático desse processo de negação, esquecimento e violência política.
O referido imóvel, atualmente utilizado como um estacionamento rotativo privado, foi incorporado aos bens da união a partir de fevereiro de 1967, não voltando a ser propriedade de nenhuma outra entidade estudantil e, nem tão pouco, seu uso foi destinado a ser um espaço de memória de acontecimentos, processos e experiências que devem ser lembrados para nunca mais ocorrerem.
Assim, dentre várias razões, a efeméride dos sessenta anos do golpe civil militar, é uma oportunidade de ressaltar a importância de lembrar as experiências, resistências e legados do movimento estudantil universitário. O desconhecimento ou recusa de compreender esse passado, presente e seus significados, é um risco aos direitos individuais, à sociedade e à democracia.