Afonso Nascimento*
Professor de Direito da UFS
Dizem que o regime militar inibiu a participação política dos estudantes. O que isso tem de verdade? Vamos por etapas. Os militares não se opuseram a que estudantes conservadores e colaboradores tivessem participação política nas universidades. Em relação a esse grupo não houve nenhum obstáculo. Esses estudantes sabiam que tinham o caminho livre para reproduzir os quadros da classe política conservadora. A política não sofreu nenhuma descontinuidade, tendo a seleção e treinamento de quadros sendo feitos de forma tradicional. E eles se reproduziram livremente. Muitos nem sequer participavam da política universitária e se candidatavam a cargos políticos, eletivos ou não, ainda enquanto estudantes.
Os estudantes que os militares não queriam fazendo política eram aqueles que queriam a volta da democracia, que faziam oposição ao regime autoritário, que queriam liberdade de expressão e de associação dentro e fora das universidade, etc. Esses estudantes opositores do regime militar eram compostos de dois grupos, ou seja, os estudantes de esquerda e os estudantes liberais. Contra esses estudantes os militares dirigiram o seu aparato de leis (Decreto-lei 477, AI-5, Lei de Segurança Nacional e o Código Penal) e a sua repressão (prisões arbitrárias, desaparecimentos, torturas, mortes, etc.). Para os objetivos deste texto, as ações dos homens dos quartéis podem ser classificadas como preventivas e repressivas. A história que quero contar diz respeito a um tipo de ação preventiva.
Luciano Oliveira era um estudante que se opunha ao regime militar. Não estava incluído na lista dos melhores estudantes da velha Faculdade de Direito. Certamente, suas ideias pendiam para a esquerda, mas não era um militante de verdade. Foi escolhido por seus colegas para encabeçar a chapa que iria disputar a direção do Centro Acadêmico “Sílvio Romero” (CASR). Não tinha no currículo nenhum registro de participação política na escola secundária, mesmo tendo passado pelo Ateneu. Era um tipo de classe média, cujo pai era dono de uma farmácia em Itabaiana. Foi exatamente por isso que ganhou o apelido de “Cibalena”. Outros amigos o chamavam de “Luchino”.
Era um leitor voraz de livros, daqueles que anotam todos os livros lidos. Gostava de escrever. Disso ele tem registro de contribuição para jornal de Itabaiana. Seu amigo Bosco Mendonça dizia que ele era “o escrivão da frota”. Em Aracaju e na Faculdade de Direito fez parte do grupo que fundou o jornal universitário “O Rekado”, proibido depois de alguns números publicados pela Polícia Federal. Falando nisso, ele foi uma vez ao prédio da PF, então na rua Campos, justamente para se explicar sobre o tal jornal cujos dirigentes queriam que fosse algo como o jornal satírico e bem-humorado chamado “O Pasquim”, leitura obrigatória dos opositores do regime militar.
Lançada a sua chapa, Luciano Oliveira recebeu, em duas ocasiões, recados para comparecer à Assessoria de Segurança e Informação da UFS, que ficava no primeiro andar do prédio da primeira reitoria na rua Lagarto. Lá se encontrou com Hélio Leão, o responsável pela assessoria, que lhe disse que não era uma boa ideia a sua candidatura a presidente do CASR. Ele quis saber por que não. Não se intimidou diante do agente do SNI. Disse que não desistiria daquele seu projeto e de seus colegas e, elevando o tom da conversa, exigiu que o agente da repressão colocasse no papel a razão que explicasse aquele veto político a seu nome – o que nunca aconteceu, claro. Depois desses dois encontros, andou pensando mais vagarosamente e decidiu fazer o que o agente da ditadura lhe pedira. Nada falou a sua família que morava na avenida Augusto Maynard, quase na esquina onde está até hoje a SSP. Isso decidido solitariamente, entregou a sua carta-renúncia ao Diretor da Faculdade, o professor José da Silva Ribeiro. Eis aqui a transcrição do conteúdo da referida carta.
“AO ASSESSOR DE INFORMAÇÕES E SEGURANÇA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE, SR. HÉLIO LEÃO;JOSÉ LUCIANO GÓIS DE OLIVEIRA, aluno regular do curso de Direito da UFS, vem por intermédio desta retirar a sua candidatura ao cargo de presidente do Centro Acadêmico “Sílvio Romero”, ao qual concorría pela chapa “Reunião”. Outrossim vem apresentar a aluna Marta Rezende, que concorria por aquela mesma chapa ao cargo de secretário geral, para suprir a sua vaga. Nos mesmos termos, adianta ainda que o cargo de secretário geral, tornado vago, será preenchido pela aluna Rosângela Rezende Santos, que na mesma chapa concorria ao cargo de 1o.secretário; e este último, da mesma maneira tornado vago, será preenchido pelo aluno Raul Vieira, que na mesma chapa concorria ao cargo de 2o. Secretário, ficando, desta forma, extinto este último”.
Esse fato ocorreu foi em 18 de agosto de 1974, época em que o general presidente era Ernesto Geisel; o governador de Sergipe, o insignificante Paulo Barreto de Menezes; e o reitor da UFS, o professor direitista de Direito Luiz Bispo. O que teria acontecido se ele tivesse mantido a sua candidatura? Rigorosamente falando, os homens da ditadura não tinham nada contra ele. Não era comunista, não pertencia a nenhuma organização clandestina, não era subversivo etc. Seguramente, não havia motivo para aquele ato discricionário.
Luciano Oliveira buscou em sua memória algum ato seu que pudesse justificar aquela arbitrariedade. Nada encontrou. Finalmente, tempo depois, lembrou-se que tinha sido convocado por escrito no mesmo ano pela Polícia Federal para tratar do fechamento de “O Rekado”. Concluiu que só poderia ser isso. O agente do SNI na UFS pode ter pedido informações à PF sobre ele. O estudante de Direito se deu por satisfeito com a descoberta e guardou cópia de sua carta-renúncia nos seus arquivos pessoais. Agora, em plena crise da COVID, arrumando papelada velha, encontrou a sua carta. Até hoje não entende como foi tomado pela ditadura como uma ameaça à ordem autoritária dos militares.
Post scriptum: Luciano Oliveira se lembrou de outro caso em que o mesmo serviço de segurança e informação da UFS vetou outro estudante de Direito, o “famoso” João Ferreira, a uma viagem junto com outros estudantes a Curitiba. Também no caso do amigo e colega “Papo-Doce”, não havia histórico de pertencimento a organização subversiva. Teria sido por causa do fato ocorrido em Lagarto no seu tempo de estudante secundarista?
- Coordenador do Núcleo de Estudos sobre o Estado e a Democracia