Pandemia do negacionismo e o papel das universidades públicas na produção de conhecimento científico no enfrentamento à COVID-19

Prof. Dr. Lucindo José Quintans Júnior – Professor Associado da Universidade Federal de Sergipe. Farmacêutico, Doutor em Farmacologia.

Prof. Dr. Paulo Ricardo Martins Filho – Professor Associado da Universidade Federal de Sergipe. Epidemiologista e Coordenador do Laboratório de Patologia Investigativa (LPI/UFS).

O Brasil chegou à lamentável marca de 100 mil mortes por COVID-19 desde o início da pandemia e cerca de 1,5% desses óbitos ocorreram em nosso querido Estado. Apesar dos números aterradores, a inabilidade e o negacionismo científico continuam sequestrando a esperança das pessoas no enfrentamento a este terrível vírus. Ir na contramão do mundo na implementação de medidas preventivas associada a uma baixa capacidade de testagem desconsiderando a letalidade do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e a força com que ele adentrou nas comunidades com maiores desvantagens socioeconômicas, e ainda apostando em medicamentos sem comprovação científica de eficácia e segurança, foram ingredientes que colocaram o país como epicentro da pandemia e mal exemplo de como lidar com um problema de saúde pública desta proporção. Além disso, os custos nsociais e econômicos provenientes da pandemia e sobretudo do negacionismo científico que arrebata a expectativa de que o brasileiro possa voltar à sua vida em segurança são incalculáveis, mas facilmente percebidos. É preciso sim ter uma pluralidade de visões para se ter uma sociedade mais democrática, mas que as questões sejam debatidas com um mínimo de razoabilidade e respeitando o
que o ser humano tem de mais valioso, a vida.


Nesse calamitoso cenário, a Universidade Federal de Sergipe (UFS) tem demonstrado um papel admirável como a casa da ciência, da cultura e do conhecimento em nosso Estado. São várias as forças-tarefas criadas pela UFS para o enfrentamento ao novo coronavírus incluindo a produção de insumos, equipamentos de proteção, realização de testes para rastreamento e diagnóstico da doença, tratamento de pacientes nos seus dois Hospitais Universitários, promoção de cursos e capacitações, planos de assistência estudantil, campanhas informativas, inquéritos epidemiológicos, e uma massiva produção de conteúdo científico. Dentre os diversos projetos existentes, destaca-se o EpiSERGIPE com o objetivo avaliar a evolução da epidemia de COVID-19, os seus impactos econômicos e sobre populações vulneráveis. É um projeto que agrega diversos laboratórios de pesquisa da UFS em várias áreas do conhecimento, técnicos, e mais de 40 alunos de graduação, mestrado e doutorado.


Durante esta semana, foi finalizada a primeira fase deste projeto com a realização de mais de 5.500 exames para rastreamento da SARS-CoV-2 em 15 estratégicos municípios sergipanos. Fruto dos dados desta primeira fase, publicamos um importante artigo em uma das maiores revistas científicas do mundo, o Journal of Travel Medicine, que vem divulgando estudos na tentativa de compreender o comportamento da epidemia em vários lugares do planeta. Esse estudo investigou o impacto das desigualdades sociais sobre as taxas da letalidade para COVID-19 em Aracaju servindo de base para
um melhor planejamento estratégico do poder executivo em nossa capital.


A COVID-19 não é tão democrática como se sugere. As pessoas que vivem em comunidades socioeconomicamente desfavorecidas têm uma probabilidade substancialmente menor de ter educação, saneamento adequado, acesso à água limpa para lavar as mãos, oportunidade de trabalhar em home-office e acesso a serviços de saúde. Além disso, é mais provável que elas morem em lares lotados e apresentem condições médicas subjacentes, incluindo hipertensão e diabetes, que são
considerados fatores de risco para COVID-19 grave. A dificuldade de manter o distanciamento social em aglomerados subnormais também contribui para a disseminação da SARS-CoV-2 e a mortalidade em populações vulneráveis. Estamos tentando, em uma ação conjunta à luz da ciência, trilharmos o melhor caminho para enfrentarmos a epidemia em Sergipe. Sim, isto está sendo feito. Não se pode negar a importância histórica da ciência para a tomada de decisão e este momento não pode ser diferente. “A ignorância não pode ser a nossa nova melhor amiga”.


Esta frase fez parte do título de um artigo publicado pelo nosso grupo na famosa revista científica “Science” em março desse ano e que foi o “pontapé” para a publicação de uma série de estudos em diversas outras revistas científicas. De lá para cá, já foram publicados mais de 15 trabalhos em relação à COVID-19. Notas técnicas em relação às taxas de ocupação de leitos de UTI e evolução dos óbitos pela COVID-19 também têm sido emitidas e discutidas com os órgãos governamentais, e assim o faremos ininterruptamente. Embora alguns negacionistas possam acreditar que a epidemia está chegando ao seu fim e que as mais de 100 mil mortes no país façam parte de um mero acaso, o cenário atual ainda é de extrema preocupação. Em Sergipe, por exemplo, embora haja uma redução do ritmo de crescimento de casos e óbitos a partir de julho, nós temos ainda um longo caminho pela frente. As pessoas podem ter a falsa impressão de que a epidemia está resolvida e assim relaxarem seus cuidados básicos incluindo o distanciamento social, a higienização das mãos, o uso de álcool gel e de máscaras de proteção. É importante que todos mantenham de forma irrestrita esses cuidados para que não voltemos a ter um crescimento no número de casos e óbitos em nosso Estado.


Infelizmente, a marca negativa já é histórica. Possivelmente, deveremos entrar nos conteúdos e lições de sala de aula como o país que lutou mais contra o negacionismo científico do que propriamente contra o novo coronavírus. Ainda dá tempo de reescrever esta biografia?

Nossos sinceros sentimentos a todas as famílias que perderam seus entes queridos nesta pandemia. Cuidem-se todos, fiquem em paz e confiem na ciência, ela é o principal alicerce no enfrentamento dessa terrível doença.

(COLUNA CIÊNCIA E SAÚDE – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA
SAÚDE COORDENADOR: Prof. Dr. Ricardo Queiroz Gurgel)

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