Profa. Dra. Priscila Lima dos Santos – Departamento de Educação em Saúde –
Campus Lagarto – UFS Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde (PPGCS)
(plimabio@gmail.com)
Renata Rocha da Silva – Mestranda Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde
(PPGCS) – UFS. (renatas2@hotmail.com)
Desde o início da pandemia do novo coronavírus, diversos questionamentos
sobre os meios de transmissão do SARS-CoV-2 foram levantados. Segundo a
Organização Mundial de Saúde, o principal meio de transmissão ocorre a partir contato
direto ou indireto de secreções como gotículas de saliva e secreções respiratórias que as
pessoas infectadas expelem ao tossir, espirrar, falar e ao cantar.
No entanto, é importante ressaltar que alguns estudos científicos atestaram a
replicação do vírus em enterócitos intestinais com consequente detecção do SARS-
CoV-2 nas fezes de pacientes sem ou com sintomas, levantando a preocupação para
uma possível rota de transmissão fecal-oral na população. Em um modelo proposto em
Belo Horizonte, viu-se que essa transmissão pode ocorrer ao levar as mãos à boca após
o contato em locais contaminados e ao comer alimentos não higienizados. O vírus
poderia invadir diretamente o epitélio gastrointestinal através da enzima conversora de
angiotensina-2 (ECA2), sendo encontrada no epitélio esofágico e no íleo e cólon.
Além disso, pesquisadores de diversos países identificaram a presença do novo
coronavírus em amostras de esgoto coletadas meses antes do primeiro caso registrado
oficialmente em Wuhan, na China. No Brasil, em Santa Catarina, foi identificado o
RNA do vírus em amostras de esgoto colhidas no dia 27 de novembro de 2019, dois
meses antes do primeiro caso registrado no país, levantando a hipótese do
subdiagnóstico.
Essa via de transmissão fecal-oral pode impulsionar o número de casos,
particularmente em áreas com saneamento inadequado e acesso limitado a água potável
limpa. No Brasil, o saneamento básico é um direito assegurado pela Constituição e
definido pela Lei nº. 11.445/2007 como o conjunto dos serviços, infraestrutura e
instalações operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza
urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais de forma
adequada à saúde pública, à conservação dos recursos naturais e à proteção do meio
ambiente. No entanto, o país ainda ocupa a 103ª posição no ranking mundial de acesso
ao saneamento básico, atrás de países da América do Sul como Uruguai, Argentina e
Venezuela. De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento
(SNIS), a taxa média de atendimento à rede de esgoto no Brasil em 2018 era de 53,2%,
enquanto a taxa de coleta de esgoto na área urbana era de 60,9%, com tratamento de
esgoto de 46,3%.
Esse déficit de saneamento básico ao redor do país gerou, no primeiro trimestre
deste ano, mais de 40 mil internações por doenças infecciosas. Outro agravante é o
elevado número de pessoas em contato direto com esgoto a céu aberto e a proximidade
desses esgotos ou fossas aos lençóis freáticos. Isso é refletido no persistente e elevado
número de casos de doenças infecciosas como a esquistossomose e a ascaridíase,
fortemente associadas à precariedade do saneamento básico e a baixos índices de
educação em saúde. Este cenário associado a possibilidade de transmissão fecal-oral do
SARS-CoV-2 nos alerta para uma situação de maior persistência do vírus em nosso
país.
Recentemente, publicamos um artigo que aborda a relação entre os índices de
saneamento básico e números de casos e óbitos além dos índices de incidência,
mortalidade e letalidade por COVID-19 e a sua distribuição espacial nas 27 Unidades
Federativas do Brasil. Neste estudo, observou-se que a maioria dos casos de COVID-19
até abril de 2020, se distribuíram entre os estados com as menores taxas de acesso à
água encanada e de sistema de coleta e tratamento de esgoto, principalmente as regiões
do Norte e Nordeste do país. Curiosamente, os estados da região Nordeste que
apresentaram melhores índices de abastecimento de água e de tratamento de esgoto
(Sergipe e Rio Grande do Norte) apresentaram menor taxa de incidência e mortalidade
pelo vírus. Esses dados reforçam a ideia de que precisamos ser mais exigentes quanto à
adequação do sistema de saneamento básico do nosso país. Como lavaremos nossas
mãos ou tomaremos banho adequadamente se a água encanada apresenta altos índices
de coliformes fecais?
Por outro lado, a abordagem epidemiológica com base nessas informações pode
ser utilizada como um indicador precoce da infecção em uma população quando não é
possível realizar o teste individual em massa. Em países como Austrália, Itália e França
foi observado que a detecção do vírus em esgoto precedeu ao aumento do número de
casos detectados, indicando que a monitorização dos esgotos é uma estratégia plausível
para detecção inicial de regiões mais propícias a casos de COVID-19. Em Belo
Horizonte, um projeto-piloto executado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
Estações de Tratamento de Esgotos Sustentáveis em parceria com a Agência Nacional
de Águas aponta, a partir na análise de amostras de esgoto, que o número de infectados
reais pode ser 20 vezes maior que o de casos registrados oficialmente.
Mais importante, essa abordagem pode servir para: direcionamento de recursos
para a melhoria das instalações de saneamento básico, especialmente tratamento e
monitorização do esgoto e acesso a água realmente limpa; ampliação das medidas de
prevenção contra o coronavírus, reforçando os cuidados básicos com a higiene após
possível contato com fezes. Com base no conhecimento atual, medidas adicionais para
prevenir o potencial de transmissão devem ser fortemente consideradas até que estudos
futuros possam estabelecer se este é um modo plausível de transmissão para SARS-
CoV-2. Prevenção continua sendo o melhor remédio.
COLUNA CIÊNCIA E SAÚDE – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA SAÚDE
COORDENADOR: Prof. Dr. Ricardo Queiroz Gurgel