Manoel Bomfim: pensador e precursor

Amâncio Cardoso – Professor de História do IFS e sócio do IHGSE

            No último dia 11 de setembro de 2020, o acervo de obras da seção sergipana do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) passou a se chamar “Biblioteca Manoel Bomfim”. A escolha do patrono desse acervo foi pertinente, pois esse significativo intelectual de expressão nacional não foi suficientemente lido e/ou conhecido pelos sergipanos em geral; ao contrário de seus contemporâneos, a exemplo de Tobias Barreto, Sílvio Romero e Fausto Cardoso.

            Vejamos, portanto, breves traços da vida e obra desse intérprete do Brasil.

            Manoel Bomfim nasceu em Aracaju no ano de 1868. Anos depois, ele foi para o Rio de Janeiro, onde se formou em medicina, em 1890. No ano seguinte, foi nomeado médico da Secretaria de Polícia do Rio, tornando-se um ano mais tarde tenente-cirurgião da Brigada Policial. Em 1894, Bomfim desiludiu-se com a medicina e abandonou a área. Então, passou a se dedicar aos estudos sociais e à educação.

Na área da educação, um fato marcante em sua vida ocorreu em 1896, quando Manoel Bomfim foi convidado pelo então prefeito do Rio de Janeiro para ocupar o cargo de subdiretor do Pedagogium. Essa importante instituição tinha a função de coordenar as atividades pedagógicas do país; de impulsionar e estimular reformas e melhorias para o ensino público nacional, em contraponto à sofrível situação da realidade escolar brasileira. Assim, em 1897, o intelectual aracajuano tornou-se Diretor Geral do Pedagogium. E foi neste contexto que ele se defrontou com o precário estado do ensino público no Brasil. Com isso, acumulou experiência necessária para investigar as possíveis raízes dos entraves educacionais brasileiros.

 Devido a sua experiência pedagógica, Bomfim produziu diversos livros didáticos destinados ao curso primário e ao ensino médio. Entre eles podemos citar: Compêndio de Zoologia geral (1902), Lições e leituras para o primeiro ano, Lições e leituras: livro do mestre e Crianças e homens, em 1922. Com Olavo Bilac (1865-1918), o príncipe dos poetas brasileiros, escreveu obras didáticas que tiveram forte influência na formação inicial de gerações: Livro de composição para o curso complementar das escolas primárias (1899) e Através do Brasil (1910). Este último foi um marco da literatura paradidática brasileira e pioneiro no gênero, oferecendo aos leitores a possibilidade de descobrir diferentes cenários sociais, geográficos e econômicos que compunham o Brasil da época.

Entre 1902 e 1903, Manoel Bomfim foi à França e presenciou debates sobre o papel da ciência na sociedade. Por conseguinte, após essa viagem, em 1905, ele publicou “A América Latina: males de origem”, inspirado pela leitura de Walter Bagehot (1826-1877).

Embora vivesse no Rio de Janeiro, em 1907, Manoel Bomfim tomou posse como Deputado Federal pelo Estado de Sergipe. Ele tentou a reeleição, mas não obteve êxito, e abandonou a política partidária para se dedicar à produção intelectual.

Uma das fases mais produtivas da carreira de Manoel Bomfim foi entre 1929 e 1931, quando publicou sua trilogia “O Brasil na América”, “O Brasil na História” e “O Brasil Nação”, respectivamente. Elas resumem seu esforço de interpretar nosso país nos aspectos geopolítico, histórico e institucional. Suas obras revelam um pensador original. Neste sentido, ele defendeu a expansão da educação pública como meio privilegiado para a construção de uma sociedade democrática, calcada na liberdade, que só poderia ser atingida pelo acesso de todos ao saber.

Outro campo de estudo do pensador sergipano foi o da psicologia. Bomfim antecipou algumas ideias posteriormente correntes nessa área, como as de Lev Vigotski (1896-1934) e Jean Piaget (1896-1980), assim como teria antecipado as ideias dos marxistas Ernst Bloch (1885-1977) e Antonio Gramsci (1891-1937), em sua interpretação da sociedade. No campo da psicologia, o sergipano escreveu, entre outros títulos: O fato psíquico (1904), Noções de Psicologia (1916), Pensar e dizer: estudos do símbolo e do pensamento (1923) e Métodos do teste: com aplicações à linguagem do ensino primário (1928).

Apesar de uma vida intelectual tão produtiva, Bomfim permaneceu quase esquecido na historiografia brasileira. Isto pode ser parcialmente explicado por sua contraposição aos pensamentos hegemônicos da época. Ele se empenhava em criticar historiadores e políticos do Brasil que, segundo ele, teriam deturpado a história nacional e contribuído para a “degradação” da nação.

            Para evitar tal degradação, o pensador aracajuano defendia a educação popular como precondição para o progresso humano. Manoel Bomfim acreditava que o ensino no Brasil teria uma importância ímpar diante das teses deterministas, que naturalizavam o atraso e o progresso das nações, baseadas nas noções de meio e raça. A ideia de uma reforma social, como resultado da ação educativa, permitiu a Bomfim ultrapassar uma explicação biológica da sociedade e construir outra, de ordem histórico-cultural.

            Manoel Bomfim também teve relevante atuação na imprensa brasileira. Foi redator e secretário de A República, da Revista Pedagogium, diretor da Revista Pedagógica Educação e Ensino e um dos fundadores da revista Universal. Redigiu a revista Leitura para Todos e escreveu artigos para diversos jornais. Em 1904, por exemplo, escreveu o texto “O progresso pela instrução”. Nele,  o aracajuano já constatava o problema que adotou como reflexão por toda vida: a impossibilidade de um regime democrático numa nação onde 90% dos indivíduos seriam incapazes de vida pública porque eram analfabetos.

            Neste sentido, Bomfim propunha entender as origens dos problemas do Brasil e da América Latina. Ele questionava as raízes do atraso e os empecilhos para a constituição de uma sociedade democrática e integradora. E para sanar tudo isso, defendia a expansão da educação pública com acesso de todos ao saber.

Além disso, ele foi um pensador que denunciou o racismo científico em voga na virada do século XIX para o XX. Nesse período, disseminaram-se teorias explicativas para o atraso ou progresso das nações. Explicações essas que tiveram sua gênese na Europa, como o positivismo de Comte; o evolucionismo de Spencer e de Darwin, e a etnologia de Gobineau, entre outros. Um dos problemas com força intelectual, no fim do século XIX, era a ideia de que a composição multirracial, como a do Brasil, era um obstáculo para a formação da nação. Neste contexto, pensadores como Oliveira Martins (1845-1894), Oliveira Viana (1883-1951) e o sergipano Silvio Romero (1851-1914) viam a mistura de raças como o grande problema da inferioridade brasileira.

Manuel Bomfim, por sua vez, contrário às análises deterministas, inovou afirmando: “sofremos, neste momento, uma inferioridade, é verdade, relativamente aos outros povos cultos. É a ignorância, é a falta de preparo e de educação para o progresso – eis a inferioridade efetiva; mas ela é curável, facilmente curável. O remédio está indicado: a necessidade imprescindível de atender-se à instrução popular”.

            Na virada para o século XX, no Brasil, buscava-se não só uma identidade nacional, mas também uma identidade específica para o campo intelectual. Nesse quadro, a produção de Bomfim ganha destaque ao refutar o discurso eurocêntrico dominante, com novos e autênticos argumentos. Para o biógrafo Ronaldo Conde Aguiar, Manoel Bomfim colocou em cena um contra discurso, que se chocava, frontalmente, com o discurso dominante e conservador de sua época.

            A ideia formulada por Bomfim é a tese do parasitismo social, onde ele enfatizava que a lógica da dominação externa, imposta pelo colonialismo, e combinada com a dominação interna, imposta pelas elites dirigentes, causava profundos males aos povos latino-americanos. Segundo o autor, o parasitismo impunha três efeitos malévolos e predadores: o enfraquecimento do parasitado; as violências que se exercem sobre eles; e a adaptação do parasitado às condições de vida que lhe são impostas.

            Neste sentido, o pensamento de Manoel Bomfim era a de “um pensador rebelde” e humanista. Por sua ousadia, denunciou o chamado racismo científico que entorpecia parte dos intelectuais e a elite dirigente brasileira. Para ele, a ideia de progresso estava intrinsecamente ligada à educação e não relacionada com as “questões raciais”. Esta ideia tornou-se para Bomfim uma espécie de crença que o acompanhou por toda a sua vida. Para ele, a ignorância (a falta de instrução) nulificava o povo de tal modo, que o tornava incapaz de distinguir suas necessidades e acreditar num futuro.

            Após uma vida dedicada ao pensamento, o aracajuano Manoel Bomfim faleceu no Rio de Janeiro em 1932, devastado por um câncer de próstata, contra o qual lutava há algum tempo.

            Por fim, diante do que foi visto, a escolha de Manoel Bomfim, para nomear o acervo recém inaugurado pelo IHGSE, merece o aplauso dos sergipanos. Assim, está de parabéns a diretoria do sodalício; em especial, a biblioteconomista Rosângela Santos de Jesus, por dirigir e coordenar os trabalhos de organização e gestão do acervo, que contém obras fundamentais sobre o Estado de Sergipe.

Para Saber Mais:

– AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. 

– ALVES FILHO, Aluízio. Manoel Bomfim: combate ao racismo, educação popular e democracia racial. São Paulo: Expressão popular, 2008.

– BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.


[1] Professor de História do IFS e sócio do IHGSE.

Rolar para cima