Afonso Nascimento – Professor de Direito da UFS
Osman Hora Fontes foi um membro da elite social e jurídica de Sergipe. Viveu setenta e seis anos. Nos anos 20 do século passado foi estudar Medicina no Rio de Janeiro e, não gostando do curso, mudou-se para o curso de Direito na Faculdade Nacional de Direito da hoje chamada UFRJ. Naqueles tempos eram poucas as famílias que podiam custear estudos superiores de seus filhos fora de Sergipe – especialmente quando Salvador e Recife ofereciam os cursos escolhidos. Depois de graduar-se em Direito, ele exerceu diversas atividades profissionais como juiz de direito, advogado, secretário de Segurança Pública, professor de Direito Operário (Direito do Trabalho) na Escola Técnica do Comércio e professor de Direito da Faculdade de Direito de Sergipe, instituição da qual foi vice-diretor e diretor, pertencendo ao grupo de seus fundadores em 1950. Foi presidente da seção sergipana da OAB. Na maior parte de sua vida profissional, isto é, por trinta e sete anos, ocupou o cargo de Procurador-Geral da República.
Enquanto estudante de Direito, fiz a disciplina Medicina Legal na sala onde ensinou, antes dele, o professor e médico Garcia Moreno. A sala tinha equipamentos usados por médicos forenses. Tenho uma vaga lembrança dele. Sei que sempre estava de paletó e gravata. Parecia ser econômico com as palavras. Por que decidi escrever esse pequeno texto sobre o professor Osman? A lembrança do seu nome veio quando escrevi, faz pouco tempo, artigo sobre o poeta Mário Jorge Vieira de Menezes, que ele tratava como se fosse seu filho. Cinco anos atrás, o professor Osman foi citado na oitiva do então governador Jackson Barreto de Lima na Comissão Estadual da Verdade (CEV). No seu depoimento, o primeiro de uma série de mais de quarenta de outros depoentes, Jackson Barreto discorria sobre pessoas ou eventos, fez uma pausa, olhando para algum militante por um instante na audiência, e aí concluiu dizendo que o professor Osman “era um dos nossos”.
Não sei ao certo o que ele quis dizer, mas interpretei a frase do ex-governador sobre o professor Osman como alguém que apoiava a luta dos estudantes de Direito em alguma atividade política. Ou tinha a sua simpatia, como alguém que era a favor da volta à democracia no Brasil. O governador que criou a comissão da verdade sergipana não quis dizer comunista ou socialista. Quando escrevi sobre o militante político Mário Jorge, lembro de ter ouvido um depoimento de alguém dizendo que Jackson Barreto e Mário Jorge eram amigos e colegas de militância.
Bem recentemente, tive acesso a arquivos da CEV que tratavam do indiciamento de José Silvério Leite Fontes, professor da Faculdade de Direito e do Ateneu, por ter liderado a famosa greve de professores e de servidores públicos estaduais em 21 de outubro de 1963. Em 3 de agosto de 1964, depois que o golpe militar do mesmo ano se tornou um fait accompli, o professor Osman foi convidado a depor no quartel do Exército em Aracaju como testemunha sobre as atividades de seu colega acima mencionado. Da leitura dos documentos não me pareceu que os arquivos contivessem todos os envolvidos naquele inquérito policial militar, pois eu sei que o diretor da Faculdade de Direito, Gonçalo Rollemberg Leite, também foi depor no Quartel do 28º.BC. Talvez o seu depoimento esteja em algum outro inquérito policial militar.
Agora tratando especificamente do caso do professor Osman, ele tomou a iniciativa no seu depoimento na guarnição militar federal. Não esperou pelo interrogador. Afinal, ele ocupava o elevado cargo de Procurador-Geral da República em Sergipe e ia ser interrogado como testemunha por um militar de baixa patente. O encarregado só lhe fez três perguntas. Antes delas, o professor Osman disse que, sem citar data de propósito, numa certa manhã (o curso de Direito era, à época, oferecido pelo turno matutino), foi à Faculdade de Direito e lá ficou sabendo pela secretária que o seu diretor Gonçalo tinha viajado ao Rio de Janeiro atendendo “a chamado e a serviço da Escola”. Diante da novidade, quis saber onde estava o ofício do diretor que transmitia a direção da faculdade a ele, o seu vice. A secretária lhe fez saber que o ofício seria trazido pelo motorista e contador da faculdade que fora levar, às pressas, o diretor “ao campo de aviação”, o aeroporto de então. Não passou muito tempo e o contador chegou, entregando-lhe o esperado documento.
Com o ofício em mãos, investiu-se na condição de diretor da instituição de ensino e, imediatamente, perguntou ao porteiro da faculdade porque a porta dos fundos de prédio estava fechada. Obteve como resposta que um grupo de grevistas passara por lá e mandara fechar janelas e portas da faculdade, como outras instituições também tinham feito. Ele não gostou do que tinha acabado de saber e mandou abrir todas as portas e todas janelas das salas de aula da faculdade, pois aquela era uma faculdade federal e, portanto, não podia ser fechada por quem quer que fosse. Era o Procurador Geral da República em ação.
Continuando, disse que a seção administrativa da escola passou a funcionar e que, como os estudantes tinham aderido à greve, não houve aulas naquela manhã. Adiantou não ter tido contato com a comissão de greve, posto que, quando chegara à faculdade, o grupo de grevistas já tinha partido. Não conversou com nenhum piqueteiro, em nenhum momento. Afirmou que as informações que estava ali a expor foram colhidas junto ao senhor João, funcionário da faculdade, entre outras fontes.
A primeira pergunta do responsável pelo inquérito foi procurar saber se o professor Osman tinha tido alguma conversa com o professor Silvério no dia da greve. Respondeu que isso não aconteceu porque, quando chegou à faculdade, o grupo de grevistas não estava mais por lá. Foi-lhe igualmente perguntado se sabia informar se o diretor Gonçalo Rollemberg Leite tinha decretado feriado na faculdade, respondendo que não. Com minhas palavras, o tal “feriado” era um boato e teria supostamente por objetivo justificar a ausência de aulas. Por último, o professor Osman disse não ter sabido da presença do professor Silvério na faculdade no dia da greve.
Não quero fazer ilações sobre o depoimento do professor Osman, mas ele, se não sabia, ficou sabendo que o professor Silvério estivera na faculdade com um grupo de ferroviários, depois partindo num jeep. Em outras palavras, ele, um democrata, sabia mais do que declarou e fez assim para reduzir a pressão do regime militar sobre seus colegas e estudantes. Dou exemplos. No dia anterior à paralização, os estudantes de Direito se reuniram em assembleia geral na faculdade e votaram pela adesão ao movimento grevista dos professores e dos servidores públicos estaduais. Em adição a isso, parece impossível não ter tomado conhecimento da deflagração da greve pelos professores das escolas superiores, secundárias e profissionalizantes, que era puxada pelo professor Silvério. O mais interessante foi, porém, a súbita viagem do diretor depois de ter conversado com a comissão de greve liderada pelo mesmo professor Silvério.