A ascensão da extrema direita: comentários

Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS

Qualquer esforço para definir o que é a extrema direita requer uma prévia discussão sobre a famosa dicotomia entre esquerda e direita. O jurista e filósofo da política Norberto Bobbio escreveu um pequeno livro sobre o assunto. De acordo com ele, o que caracteriza a esquerda é o igualitarismo entre as pessoas e as classes sociais, ao passo que a direita põe ênfase na liberdade, ignorando as desigualdades sociais.

Se alguém radicaliza a importância do igualitarismo (comunismo, anarquismo etc.) torna-se de extrema esquerda, e o igualitarismo é transformado num projeto utópico de sociedade. Isso levou a que um historiador americano, Barrington Moore Jr., a admitir uma certa desigualdade para que cheguemos a uma sociedade mais próxima do igualitarismo. Ainda segundo Norberto Bobbio, a direita associada com a desigualdade, por sua vez, aposta nas pessoas livres porém desiguais. Quanto mais uma pessoa mais defende a desigualdade, mais de direita ela é. Esse é o bem caso da extrema direita em toda a parte. Se são reunidas mais desigualdade com menos liberdade ou falta desta, temos a extrema direita, geralmente tradicionalista, passadista, adepta de regimes ditatoriais (fascistas, nazistas, etc.) e de fortes hierarquias de todos os tipos e com uma indisfarçável simpatia pelo uso da violência simbólica e física.

A extrema direita fora do poder. O radicalismo ou o extremismo de direita começou com a invasão e a conquista por europeus dessa parte da América chamada Brasil. De meados do século XVI até o fim do século XIX, brasileiros nativos e africanos foram escravizados. A escravidão é uma forma de radicalismo social de direita porque nega completamente a liberdade e descarta qualquer ideia de igualdade. Escravos são comprados, vendidos e alugados como se fossem mercadorias. Proprietários de escravos, comprando ou vendendo, são pessoas de extrema direita.
Do encontro e do choque entre essas três civilizações (indígena, africana e europeia) que construíram o Brasil resultou o surgimento de uma cultura de hierarquias múltiplas de classes e de culturas, de intolerância religiosa e outras, de antissemitismo, de preconceitos, de patriarcalismo, de homofobia etc. cuja desconstrução permanece um desafio até hoje.

Para que o leitor tenha uma ideia da força desse legado da cultura colonial de direita e de extrema direita, é importante lembrar que o Brasil sem escravidão tem tido pouco mais de um século de sociedade de homens e mulheres livres, enquanto a cultura e a moral escravistas durou mais de três séculos! É lamentável que os historiadores só gostem de tratar do Brasil a partir da República deixando de lado o longo e pesado legado cultural autoritário social, cultural e político do período colonial. Muitos dos nossos piores valores, tão disseminados entre o povão e as elites, são herança direta da escravidão brasileira. Cultura é coisa séria e não é da noite para o dia que pode ser transformada.

É necessário dizer sem rodeios que a violência também foi a parteira da história e da cultura do Brasil e que a primeira república reproduz essas tradições de extremismos de direita, a despeito de condições materiais e políticas terem permitido alguma mudança superficial na sociedade civil e no Estado. Foi com o regime ditatorial de Vargas (1930-1945) que novos valores foram sobrepostos, porém sem a sua destruição, à velha cultura de autoritarismo social e cultural.

Do século XIX até meados da nova centúria, a cultura erudita, exceções à parte, estava impregnada de extremismo direitista como era o racismo científico de Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, entre tantos outros. Não estamos falando aqui do pensamento social conservador de muitos autores, que fique bem entendido.

Entre os anos 1930 e 1940, havia na máquina estatal autoridades civis e militares que se queriam simpatizantes (Eurico Gaspar Dutra, por exemplo) do extremismo de direita de Adolfo Hitler e Benito Mussolini. Na sociedade civil, também surgiram grupos de extrema direita, civis e religiosos, sendo os integralistas os mais destacados seguidores do radicalismo fascista. Comandados por Plínio Salgado, os integralistas se organizaram no país inteiro, imitaram a extrema direita fascista italiana através de muitos símbolos, tentaram um golpe de Estado e foram parados pelo ditador Getúlio Vargas. Grupos de imigrantes japoneses, italianos e alemães de extrema direita também esposaram ideias extremistas, mas foram contidos pelo regime autoritário varguista. Um nome muito famoso de um intelectual escancaradamente fascista foi o do jurista e reitor da USP Miguel Reale, cujos livros são ainda hoje usados por professores de Direito(a) no Brasil.

A extrema direita no poder. Quando, no começo do século XIX, foi construído um Estado e foi permitida a representação da população livre, deputados, senadores, ministros e reis, regentes e imperadores compunham uma classe política de extrema direita – mesmo que eles se rotulassem segundo conceitos importados da Europa de então. Soa isso esquisito? A monarquia brasileira era uma ditadura de extrema direita, que sustentava e era sustentada pelos grupos de proprietários escravocratas.

A ditadura militar foi o primeiro regime político de extrema direita nos governos dos generais Costa e Silva e Médici. Grupos de extrema direita grassaram o país. Dizendo de outra forma, a ditadura castrense, em si, não era de extrema direita, mas de direita. Por outro lado, grupos militares que praticaram tortura e terrorismo de Estado também podem ser classificados de extrema direita. Havia ainda indivíduos e grupos civis de extrema direita que apoiavam as ações extremistas do regime autoritário: Opus Dei, Tradição, Família e Propriedade, empresários que financiavam grupos estatais de extermínio, etc.

Ainda tratando do caso de muitos militares, o seu extremismo de direita estava ligado umbilicalmente a um anticomunismo que adotou a tortura como método para obter confissões, fez eliminação física de opositores e o desaparecimento de outros tantos, explodiu de bombas em bancas de revistas, em instituições, em espetáculos musicais, etc. Era a extrema direita militar (a linha dura) que não queria a abertura do regime autoritário.

Democracia, grande mídia e redes sociais virtuais. Com o fim do regime militar, houve um refluxo da extrema direita. A volta da democracia, especialmente com a Constituição Federal de 1988, possibilitou a emergência de novos movimentos sociais que têm lutado por igualdade econômica, por reconhecimento, por inclusão de todo o tipo, que tomaram por base direitos previstos na mencionada carta política. Com a chegada ao poder de um partido social democrata, o Partido dos Trabalhadores (PT), já no século XXI, progressos sociais, jurídicos e políticos foram feitos. O país parecia tomar uma direção mais livre e mais igualitária.

Paralelamente a esse movimento, a internet e as redes sociais virtuais proporcionaram um associativismo nunca visto no país. Todo o mundo tinha e tem o que dizer. O que tinha de pior em maior quantidade e de melhor em menor volume em termos de valores e de pessoas passou a atuar no pantanal das redes sociais. Grupos de extrema direita, letrada e iletrada, (neointegralistas, neonazistas, racistas, xenófobos, homofóbicos, misóginos, etc.) passaram, pouco a pouco, ao ativismo político, então de forma escancarada, sem vergonha de mostrar a cara como outrora. Esses grupos extremistas de direita passaram a fazer encontros e trocas com outros radicais americanos e europeus.

A eleição acusada de fraudulenta do obscuro e obtuso Jair Messias Bolsonaro em 2018, que representa a chegada da extrema direita ao poder, foi antecedida por grandes manifestações da direita mobilizadas pela grande mídia, com o propósito explícito de destruir a esquerda social democrata a pretexto de combater a corrupção. Esse processo terminou por levar ao impeachment golpista da presidente Dilma Rousseff em 2016, e a tomada do poder pelo golpista Michel Temer que passou a implementar um programa de regresso social e neoliberal de governo durante pouco mais de um ano.

A eleição presidencial de 2018 era esperada como um novo embate entre PSDB e PT. Depois que a Operação Lava-Jato comandada de fato pelo juiz de direita Sérgio Moro impediu a participação de Luís Ignácio da Silva, substituído por um professor universitário Paulo Haddad, a direita empresarial do PSDB foi surpreendida por um político desqualificado, populista de direita, abertamente fascista, que passou a polarizar com o PT. Numa eleição contestada por muitos, como foi dito acima, com o uso de recursos tecnológicos para influenciar eleitores cansados de tantos escândalos de corrupção, a população enraivecida depositou o seu voto na extrema direita.

Esse governo de extrema direita, em apenas seis meses de administração, tem sido uma fonte permanente de crises. Para a economia, o seu projeto consiste em aprofundar as reformas neoliberais começadas com Fernando Collor e aprofundadas por Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de um governo entreguista, sem base parlamentar de apoio no Congresso e antipopular, que busca implementar uma agenda politicamente fascista. Infelizmente, generais e outros militares do Exército e das outras forças armadas têm erradamente participado desse governo que, com todo o seu extremismo direitista, é totalmente incompatível com o regime democrático e que pode estar levando à destruição do pouco que resta da débil democracia brasileira.

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