A ditadura militar em Sergipe

Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS

Escrevendo sobre a história política brasileira, o historiador norte-americano Thomas Skidmore considerou o hiato político entre a ditadura do Estado Novo e a ditadura militar como um “experimento democrático”. Gosto dessa caracterização. Nesse período, o Brasil passou a ter partidos políticos nacionais, os chamados três poderes e o federalismo funcionavam com suas competências respeitadas, eleições ocorriam regularmente e as liberdades e os direitos políticos vigoravam com restrições, mas era inegável o clima político democrático.

A conservadora sociedade sergipana também conheceu essa experiência de “democracia liberal” no período mencionado. Com efeito, malgrado a partidarização da máquina estatal, da violência política, entre outros males, o regime democrático sergipano, que não era nenhum modelo, também funcionou aos trancos e barrancos. Acontece que a democracia tem um melhor desempenho e constitui fonte de estabilidade política em sociedades menos assimétricas, menos desiguais e menos hierárquicas. Em espaços diferentes, a democracia tende a ser uma força subversiva.

Foi isso o que ocorreu no período que antecedeu á ditadura militar. Grupos reformistas e nacionalistas apareceram como lideranças das classes subalternas nos sindicatos, no movimento estudantil e na classe política e se alinharam a outros brasileiros pedindo reformas de base (reforma agrária, etc.). A despeito das fortes limitações e da violência impostas pelos secretários de segurança do primeiro governo de José Leite (coincidentemente, a repressão da Operação Cajueiro também ocorrerá durante a segunda administração do mesmo José Leite), acumularam forças, tornaram-se mais vocais na expressão de demandas populares mas, para estragar a inflexão reformista, vieram o golpe de Estado e a ditadura militar como seu prolongamento, que puseram um termo na precária democracia liberal sergipana.

O golpe militar e a ditadura militar desmantelaram o que parece ter sido a principal experiência de mobilização política na história sergipana. As forças do Exército em Sergipe seguiu o figurino dos golpes: cercaram o Palácio do Governo e depuseram o governador “errante” no seu retorno a Sergipe, ofereceram o emprego de interventor ao conservador general Djenal Tavares de Queiroz que não aceitou, mas que não foi recusado pelo ex-vice governador (falo em ex-governador porque a legalidade tinha sido quebrada, ou seja, ele não era mais vice-governador) Celso de Carvalho.

Munidos de Lei de Segurança Nacional (LSN) e, em seguida, de outros recursos legislativos autoritários (especialmente os atos institucionais) que permitiam enquadrar as ações dos grupos reformistas como “subversivas” e de posse de fichas de ativistas acumuladas e organizadas ao longo do hiato democrático pela SSP e pelo próprio Exército, os militares prenderam, interrogaram, acarearam, torturaram, indiciaram sindicalistas, estudantes secundaristas e universitários, intelectuais, etc. Liberaram muitos também. Durante esse primeiro momento, as instalações do quartel do 28º BC nunca estiveram tão cheias de gente. Eram pessoas entrando e saindo, enquanto outras subiam a colina e lá ficavam, numa palavra, de novo o quadro típico dessas situações de golpe de militar.

Depois disso, mas não necessariamente nessa ordem expositiva, os militares passaram ao momento dos expurgos na administração pública. Criaram a Comissão Geral de Investigação (CGI), com a colaboração do Ministério Público Estadual, fizeram o levantamento de nomes de “subversivos” no serviço público e providenciaram processos para a sua exoneração. Ainda como parte desses expurgos, os militares trataram de cassar deputados da Assembleia Legislativa e mais tarde fizeram baixas na magistratura. Com a situação sob o controle militar, mantiveram a fachada democrática da dominação e puseram de pé a estrutura do regime militar em Sergipe.

Colocaram em funcionamento a sua polícia política, pois, como qualquer regime ditatorial, ela é indispensável para a nova ordem política ser bem-sucedida. Com efeito, tornou-se imperativo articular os serviços de informações e de repressão para vigiar, prender e punir pessoas e grupos considerados suspeitos de “subversão” segundo a sua interpretação distorcida de suas leis de segurança nacional. A polícia política dos militares era coletiva e comportava várias instituições como a Polícia Federal, a não lembrada SSP, o SNI e outros órgãos das Forças Armadas. A atuação dessa polícia política dos militares, excluídas as muitas ações no varejo do cotidiano da vida sob a sua ditadura, ocorreu em duas grandes ocasiões, a saber, em 1968 com a prisão dos estudantes universitários que tinham participado do impossível congresso de Ibiúna e em 1976 com novas prisões de estudantes universitários e comunistas que faziam parte da Ala Jovem do MDB. Resumindo, em Sergipe, houve três importantes momentos de repressão militar: em 1964, em 1968 e em 1976.

Além disso, os militares cuidaram de legitimar o seu regime, pois dominar apenas pela violência nunca é aconselhado. Mantendo uma fachada democrática através de eleições em Sergipe, os homens montados a cavalo se serviram de diversos expedientes, a saber, a) reivindicaram para si a luta contra a corrupção civil; b) prometeram estabilizar a economia e trazer desenvolvimento econômico para todos; c) puseram novo conteúdo nas matérias escolares Educação Moral e Cívica (EMC), Organização Social e Política (OSPB) e inovaram com a criação da disciplina Estudos de Problemas Brasileiros (EPB) para os estudantes universitários; d) forneceram cursos para treinamento de elites sergipanas com formação universitária afinadas com a ditadura militar na Escola Superior de Guerra e na Associação de Diplomados da Escola Superior de Guerra – o maior programa de seleção e treinamento de elites autoritárias na história do Brasil, a que aderiram alegremente professores universitários, integrantes da classe política, empresários e candidatos a empresários, jornalistas, antigos reformistas transformados em oportunistas (os vira-casacas), etc.

Do ponto de vista do seu funcionamento, a ditadura militar em Sergipe conheceu resistência de opositores – que é um capítulo especial dentro desse regime -, mas essa resistência não ameaçou a estabilidade do regime fundado na força militar e que transformou as instituições administrativas, jurídicas, repressivas e políticas estaduais e municipais numa sua extensão. Se dependesse somente de Sergipe, onde não ocorreram “anos de chumbo” nem luta armada, os militares ficariam no poder eternamente. De fato, apesar de seus opositores em antigos e novos espaços como os sindicatos, o movimento estudantil, os segmentos minoritários da classe política e o lado progressista da Igreja Católica, a dominação militar em Sergipe foi quase esmagadora. Os militares indicaram cinco interventores ou “governadores” obedientes e, na Assembleia Legislativa, contaram com a fidelidade incontestável da maioria parlamentar arenista eleita pelo voto popular.

Em relação ao legado do regime militar em Sergipe, este não poderia ter sido pior: ao derrotarem as forças reformistas, os militares obrigaram a essas mesmas forças a recomeçar praticamente do zero e fortaleceram as conservadoras elites sociais, econômicas, culturais e políticas sergipanas. Desse modo, reuniu o que tinha de pior do autoritarismo social sergipano com o autoritarismo militar brasileiro. A única herança positiva que merece destaque foi a criação da UFS em 1968, como parte do sistema federal de universidades. Por outro lado, se os militares foram vitoriosos no plano da ação política, no que diz respeito á memória de sua ditadura, todo ano, a cada aniversário do regime militar, este é motivo de derrota para os homens da caserna, pois regimes de força e de violência não são objeto de elogios quando o relógio democrático é atualizado.

(Publicado originalmente no Jornal da Cidade)

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