Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS
Eu não sou especialista em questões militares. No entanto, tendo trabalhado na Comissão Estadual da Verdade de Sergipe (para apurar violações de direitos humanos feitas pelo regime militar), lendo muitos documentos militares e policiais federais estaduais, passei a ter interesse pelo assunto. Para fazer essa conversa inicial mais curta, escrevo como um curioso muito interessado sobre assuntos militares. É nessa condição que resolvi botar no papel algumas anotações sobre a Escola Superior de Guerra, uma instituição escolar militar que, em 2019, completa setenta anos.
A Escola Superior de Guerra (ESG) foi criada em 1949 pelo Exército brasileiro. Ainda hoje é apelidada de “Sorbonne” (nome de famosa universidade francesa) para se destacar das diversas escolas militares espalhadas pelo país. Como já escrevi alhures, ela teve como modelo o National War College, também fundado nos Estados Unidos depois do fim da II Guerra Mundial e com o início da assim chamada Guerra Fria entre as duas maiores potências nucleares, mais precisamente, a quebra de braços entre Estados Unidos e União Soviética, pela hegemonia militar em escala planetária. Três militares norte-americanos participaram, aqui no Brasil, do processo de construção da ESG. De sua criação em 1949 até 2019, a ESG tem estado sob a influência americana.
Nesses setenta de existência institucional, a ESG tem mantido o seu objetivo de formar elites não apenas militares, mas também civis , todavia em menor número. Essas elites civis levam legitimidade a essa instituição escolar militar de alto nível – além de serem aliados estratégicos na sociedade civil brasileira. Não foi criada para servir, como serviu, somente à ditadura militar. Sua trajetória inclui os períodos antes do golpe militar de 1964, durante e depois do regime militar. Tenho consultado o sítio na internet dessa escola em diversas ocasiões, chegando mesmo a fazer uma visitinha a essa instituição de altos estudos no bairro da Urca no Rio de Janeiro. Dessa visita in locu, guardei como impressão a ideia de uma escola para elites com salas de aula, biblioteca, com professores circulando, salas de leitura, cujo lema diz “Nesta casa, estuda-se o destino do Brasil”.
O curso da Escola Guerra que nos interessa aqui é aquele chamado Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CEAPE), que é o primeiro e o mais importante entre todos os outros ofertados pela ESG. Esse curso era, até 1996, chamado Curso Superior de Guerra. Além dele, são ofertados outros cursos como os seguintes: Curso Avançado de Defesa Sul-Americano, Curso de Estado-Maior Conjunto, Curso de Gestão de Recursos de Defesa, Curso de Análise de Crises Internacionais, Curso de Logística e Mobilização Nacional, Curso Superior de Defesa, Curso Superior de Inteligência Estratégica, Programa de Extensão Cultural da Escola Superior de Guerra (PECESG), CDICA, Curso de Altos Estudos de Defesa, Curso de Direito Internacional dos Conflitos Armados, Curso de Diplomacia de Defesa, Arquivos Cursos e Regimento”. Além dos cursos mencionados, possui um Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa (com equivalência universitária).
O CEAPE visa à preparação de elites intelectuais militares e civis para pensar a doutrina militar de defesa do Brasil. Como está escrito no sítio da instituição, a “destinação atual do CAEPE é preparar civis e militares, do Brasil e das Nações Amigas, para o exercício de funções de direção e assessoramento de alto nível na administração pública, em especial nas áreas de segurança e da defesa nacional”. Da citação acima, observa-se que houve um alargamento da oferta do curso para militares de “nações amigas” da América Espanhola e da África. Antes excluídas, as mulheres também passaram a fazer o referido curso a partir de 1983. Em adição a isso, é dito que os quadros formados por esse curso são para ocupar posições de poder e liderança nos altos escalões da máquina estatal brasileira.
O Curso Superior de Guerra teve o seu nome trocado para Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia em 1985, tempo em que também teve lugar uma reforma do seu conteúdo programático – o que coincide com o fim da ditadura militar, mas não exatamente com aquele da Guerra Fria (1981). Não foi encontrada no sítio da ESG a grade curricular do curso na sua primeira versão, mas somente a lista das disciplinas do currículo em vigor. O que precisam saber os estagiários (assim são chamados os seus “estudantes”; em inglês “interns”) militares e civis que frequentam o CEAP?
O curso está assim estruturado: uma fase básica, uma fase específica e uma fase de aplicação. De um modo geral, aos estagiários são oferecidas disciplinas cuja elaboração empresta elementos dos cursos de Sociologia, de Ciência Política, de Relações Internacionais, de Economia, Estudos Diplomáticos e de Estudos Estratégicos. Da leitura dos títulos das disciplinas, o curso multidisciplinar parece ser de alto nível e muito razoável (exemplos de disciplinas estudadas: elementos teóricos da guerra, expressão do poder militar nacional, suporte jurídico do emprego das forças armadas, elementos teóricos de inteligência e contra inteligência, fundamentos da análise de risco, fundamentos de geopolítica, pensamento geoestratégico norte-americano, entre outras), mas não encontrei ementas ou bibliografias do curso mencionado, nem tampouco sobre o enfoque que se supõe seja conservador ou de direita. Em se tratando de uma escola militar de elite para treinar intelectuais direitistas, não é de se esperar um enfoque de “pensamento crítico”. Mas existem nesse espaço militar, claro, lutas internas para definir a política de defesa nacional.
A ESG começou sendo dirigida por militares do Exército, passando em seguida a ter diretores oriundos das três forças armadas, em regime de rodízio. O quadro de professores da ESG inclui palestrantes militares ou não, bem como professores com titulação de especialistas, mestres e doutores em diversas áreas. Sobre o processo seletivo dos estagiários (homens e mulheres, brasileiros e estrangeiros), os critérios são misturados, ou seja, seleção social, profissional, por região, por força armada, por gênero e por nacionalidade. Não é demais chamar a atenção para o fato de que os selecionados, militares e civis, já são elites civis e estatais no Brasil e no exterior.
Como se trata de uma escola de elite para pensar problemas de segurança ou de defesa nacional, seria mais natural que os que a fazem se preocupassem com os “inimigos externos”. Todavia, como o Brasil somente tem fronteiras com países vizinhos do lado oeste de seu território (à exceção do Uruguai), e considerando as suas relações pacíficas depois da construção de estados nacionais no século XIX (de lado o problema com o Acre), a ESG pensa os problemas externos, mas a sua ênfase parece recair sobre os “inimigos internos”. No período iniciado com a fundação da ESG, o interesse dessa espécie de think-tank militar foi a luta contra o comunismo, real ou imaginário, dentro e fora do país. Com a queda do Muro de Berlim (1989) e, em seguida, com fim da União Soviética (1991), a sua atenção está mais focada em grupos armados em geral, a exemplo de traficantes e de terroristas, e também movimentos sociais que ameacem a ordem interna.
A história da Escola Superior de Guerra compreende três períodos, isto é, antes, durante e depois da ditadura militar. O mais importante deles foi, sem dúvida, aquele do regime militar. Com efeito, naquele tempo esse curso da ESG era muito procurado por civis e militares, pois eles significavam ao mesmo tempo prova de lealdade aos governos autoritários, bem como uma “carta de recomendação” para as oportunidades bons empregos nos altos escalões do Estado de segurança nacional brasileiro. É necessário acrescentar que, nesse mesmo período, funcionaram as Associações de Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESGs), espécie de instituições que multiplicavam no país inteiro as ideias e os objetivos do principal curso da ESG, localizada no Rio de Janeiro. Nesse período, como já escrevi em outro lugar, tudo somado, foi a criada a maior rede de treinamento de elites intelectuais militares e civis no Brasil. No entanto, quando a ditadura militar começou a definhar por conta da crise econômica, não foram poucas as ADESGs fechadas pelo país inteiro. Há mais de uma década, as ADESGs começaram a ser reabertas nas capitais e nas cidades interioranas do Brasil.
No sítio da Escola Superior de Guerra é mencionado que por lá passaram quatro presidentes da República e muitos ministros de Estado. Isso é pouco. É preciso acrescentar empresários, profissionais liberais, ministros dos tribunais superiores, governadores, políticos importantes na esfera federal e assim por diante. No momento em que escrevo esse pequeno texto, o Brasil, se já não é, parece estar em firme caminhada na direção de uma nova ditadura, com o golpe de 2016. Existem cerca de cem militares das forças armadas no atual governo federal. Quantos egressos da Escola Superior de Guerra, que fizeram o curso do CEAPE, estão incluídos na centena de militares do governo de Bolsonaro? Ainda não é possível dizer. Isso fica para um outro texto.
PS: A maior parte das informações usadas aqui foi extraída do sítio da ESG que é o seguinte: https://www.esg.br/.