Eugênio Nascimento
No início da década de 1960, quando assumiu a Diocese de Propriá, o bispo mineiro dom José Brandão de Castro (1919 – 1999) puxou para si a responsabilidade de ser o pastor de milhares de ribeirinhos e sertanejos espalhados nos 23 municípios do Baixo São Francisco sergipano. Na época, era uma região muito pobre e duramente atingida por sucessivas secas. Esse quadro, nos dias de hoje, está bem melhor, mas continua sacrificante para as pessoas mais humildes que lá estão fixadas.
Logo de primeira, o bispo pensou e chegou a comentar em vários eventos públicos: “sozinho não vou para lugar algum. Vou precisar de gente para trabalhar mais diretamente ligada ao povo desses municípios”, no caso, Amparo de São Francisco, Brejo Grande, Canhoba, Cedro de São João, Gararu, Graccho Cardoso, Ilha das Flores, Itabi, Japaratuba, Japoatã, Malhada dos Bois, Monte Alegre, Muribeca, Neópolis, Nossa Senhora da Gloria, Nossa Senhora de Lourdes, Pacatuba, Pirambu, Poço Redondo, Propriá, Santana do São Francisco, São Francisco e Telha.
Comprometido com as causas religiosa e social, o bispo buscou atrair gente disposta a colocar em prática na região o que já era chamado de Teologia de Libertação. E isso foi feito.
Consultado, o padre Isaias Nascimento, que atua na Diocese de Propriá, explica o por que da tomada desse rumo: dois eventos que marcaram a igreja há 50 anos: O primeiro foi o Concílio Vaticano II realizado no período de 62 a 65, em 4 sessões iniciando sempre no 15 de setembro e encerrando no dia 08 de dezembro. A Igreja procurou se atualizar à realidade buscando ser solidária às alegrias e esperança dos povos do mundo, principalmente os mais pobres. Já o segundo evento foi a Conferência Episcopal Latino Americana realizada em Medellín, na Colômbia, em 1968. Nele, os bispos foram mais incisivos em aplicar os resultados do Concílio. Eles denunciaram as injustiças que provocavam a exploração dos povos do nosso continente reafirmando a opção preferencial pelos pobres; a viverem em Comunidades Eclesiais de Base e a se organizarem em suas entidades de classe.
Para encampar esse projeto, dom Brandão passou a c ontar com o apoio dos seus colegas missionários redentoristas belgas, que foram chegando a partir de 1964. São eles: padres León Gregório, Geraldo Olivier, Domingos Pulgas, Etienne, Nestor Mathieu, Cláudio Filipe, Paulo Lebeau, Estevam, irmão Guido (Michel Dessy); os leigos Remi Gauvin, Jean Noel e a esposa Nanou. Essa primeira leva, puxou os trabalhos nas sedes dos municípios e povoados. Chegaram também as Irmãs religiosas da Caridade de Namur, da Bélgica: Francisca, Terezinha, Mathilde e Cecilia. Entre os leigos chegaram também da Bélgica Jeaninne, Anita e Mônica.
Como no período o Brasil já estava na ditadura e sob o comando dos militares, os belgas foram “fichados” pela Polícia Federal e eram vistos pelo governo como subversivos.
As presenças dos belgas em Sergipe atraíram os olhares de parentes, amigos e ONGs europeias para o quadro de miséria e fome reinante na região. Mandaram ajudas financeiras para o trabalho desenvolvido pela Diocese de Propriá. O Poder público renegava os sertanejos sergipanos e era fato comum, nos períodos de seca, a entrada deles na mendicância em Aracaju ou a ida para grandes centros, como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília em busca de empregos para conseguirem alguns trocados, para a sobrevivência das famílias,
O trabalho comunitário foi sendo fortalecido, mas ainda precisava de um novo reforço. Por isso, vieram também para a região do São Francisco sergipano, em 1968, os frades franciscanos que se estabeleceram em Porto da Folha: frades Juvenal, Angelino, Roberto Eufrásio, Raimundo, Eliete, Sebastião, e o aspirante Anísio.
Não se deve esquecer também outras religiosas que dedicaram suas vidas à luta dos pobres, a exemplo da belga irmã Rita, de Pacatuba, e as Irmãs Hermínia, Davina, Eliete e Odete, que moravam em Itabi, atuando junto aos camponeses. É bom também destacar as Irmãs de Brejo Grande, que até hoje são comprometidas com os empobrecidos das periferias e os quilombolas – Regina, Espírito Santo, Clara, Eliza e Luísa
Todos se envolveram de corpo e alma na vivência do evangelho, conforme as orientações dos bispos em Medellín, e optaram por morar no meio dos pobres, contribuíam na formação bíblico-catequética e social, através do fortalecimento do sindicato rural, cooperativismo, associações comunitárias… E denunciavam as injustiças muito presentes nos 14 municípios, entre os quais o uso abusivo da mão de obra quase que gratuita.
O padre Isaias destaca algumas das lutas desenvolvidas por esse pessoal. “Lembramos aqui os casos dos posseiros do Betume, em Neópolis, do povo indígena Xokó, da Ilha de São Pedro, em Porto da Folha, dos posseiros de Santana dos Frades, em Pacatuba, e tantos outros casos em que as lutas motivaram como reações perseguições de vários tipos, desde ameaças de morte, prisões feitas pelo juiz Francisco Novais, abaixo-assinados contra o bispo…etc” Esse abaixo-assinado a que se refere o religioso pedia ao Vaticano para tirar dom Brandão da diocese.
Mas hoje, Isaias diz que “ vislumbramos o Papa Francisco que nos convida ao compromisso de estarmos juntos ao povo, aos mais pobres: ” sejam pastores com cheiro de ovelhas…” O religioso entende que o novo papa procura atualizar os compromissos assumidos no Concílio Vaticano II e Medellín, que foram rompidos nos anos 80 com o advento do Papa João Paulo II. O papa conservador retornou à grande disciplina, devolvendo o exercício sacerdotal aos altares, se distanciando da realidade do povo, dos pobres. Deu um basta na aplicação da Teologia da Libertação e deu fim às Comunidades Eclesiais de Base.
É no contexto da luta popular na região do São Francisco que conquista grande visibilidade o frade Enoque Salvador de Melo. Ele é um ex-bancário pernambucano que optou pela igreja progressista e nela vive até os dias de hoje. Foi prefeito de Poço Redondo. Neste dezembro foi comemorado os seus 50 anos de sacerdócio). Recebeu homenagens, inclusive dos índios Xokó. Enoque foi forjado na luta e nunca abandonou o seu povo. Mora ainda hoje no município de Poço Redondo.
(Leia também “Frei Enoque: Vida e missão, uma contestação em nome do evangelho”, de Eduardo Gomes)