Clóvis Barbosa
Sergipe não é dado a cultivar a sua memória cultural, aquilo que nós reconhecemos como pertencentes à nossa identidade. Justiça se faça, entretanto, às raras exceções aqui e ali existentes e que. com todos os sacrifícios, procuram resgatar figuras sergipanas que brilharam no cenário cultural brasileiro, mas que são esquecidas na própria terra. Pois bem! A primeira metade da década de 40 no século passado foi muita rica em acontecimentos históricos. A Segunda Grande Guerra Mundial teve o seu apogeu e término nesse período, marcado por fatos como a ocupação de Paris pelos alemães; o governo fascista e autoritá-rio do Marechal Pétain na França ocupada; a adesão do Japão às forças da Alemanha e Itália; a reeleição do presidente Franklin Roosevelt nos Estados Unidos; a criação da Justiça do Trabalho no Brasil; a destruição da base militar norte-americana em Pearl Harbor por caças japoneses, fazendo com que os americanos entrassem na guerra contra o Eixo; a invasão da Rússia pelos alemães; a adesão do Brasil à guerra ao lado dos aliados; a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) no Brasil; a entrada no cenário de Charles de Gaulle, nomeado comandan-te-chefe das forças da França livre; a libertação de Paris pelos franceses do jugo alemão; a libertação dos prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz pelos soldados soviéticos; o suicídio do führer Adolf Hitler; a rendição da Alemanha; a assinatura da Carta das Nações Unidas, em que se formalizou a criação da ONU; as duas bombas atômicas lança-das pelos Estados Unidos nas cidades japonesas de Hiroshima e Na-gasaki; a rendição do Japão e a deposição do ditador Getúlio Vargas no Brasil.
Nesta fase, o Rio de Janeiro era o centro intelectual do país, não somente pelo fato de ser a capital federal, mas, também, por ali en-contrar-se instalada a Academia Brasileira de Letras, as modernas livra-
rias e editoras e ser a morada da maioria dos principais literatos do Bra-sil. Em 1922, com a chamada “Semana da Arte Moderna”, ocorreu uma revolução na mente cultural brasileira, com adesão dos intelectuais ao processo de transformação social. Passado o período ditatorial denomi-nado “Estado Novo” – iniciado em 1935 –, o ano de 1945 acabaria por recolocar no cenário o binômio intelectual com a sua produção e o enga-jamento político. Nessa conjuntura é que surge a figura de uma jovem sergipana, Alina Paim, a flanar pelas ruas do centro do Rio de Janeiro – com uma pasta contendo os manuscritos da sua obra “Estrada da Liber-dade” – em direção à Confeitaria Colombo, estabelecimento fundado em 1894. Ambiente com decoração art noveau, parece que ali o tempo pa-rou sem observar as transformações. Naquelas mesas sentaram biscoi-tos finos da intelectualidade brasileira, como Olavo Bilac, Chiquinha Gonzaga, Machado de Assis, Heitor Villa-Lobos, e tantas e tantas per-sonalidades históricas nacionais e internacionais. Comenta-se que, em uma de suas mesas, o poeta Bilac escreveu os versos do Hino à Ban-deira. Então, Paim adentrou o recinto e chegou para um garçom pergun-tando-lhe sobre Graciliano Ramos. Ele indicou a mesa onde se encon-trava o autor de “Memórias do Cárcere”. Avizinhou-se, trêmula, sem sa-ber como seria a recepção daquele que, à época, era um escritor de fa-ma. Resoluta, aproximou-se da mesa. Bem, deixemos que ela conte como se deu a cena:
“(…) Mestre Graça ficou surpreso com a minha aproximação. Muito educado, convidou-me para tomar um café. Sentei-me à mesa, lembro-me que tremia muito, aquilo parecia algo do outro mundo: eu to-mando café com Graciliano Ramos! (risos). Quando terminou pediu-me para fazer uma dedicatória, eu escrevi: ‘Alina, oferece a Graciliano Ra-mos’, apenas isso. Ele, então, colocou no bolso do paletó branco aquele material e entregou-me a pasta. Apenas disse-me para voltar à confeita-ria em quinze dias, pois já teria uma resposta (…) Quinze dias depois lá estava eu coberta de vergonha e com medo do que ele tinha a me dizer: Alina, muito bom revê-la! Olha… é um romance e dos bons, porém falta-lhe técnica. A partir de amanhã vá até minha casa, para que eu lhe en-sine tudo o que sei do ponto de vista técnico”. Depois de aprimorar a sua obra “Estrada da Liberdade” com os ensinamentos recebidos de Graciliano, dirigiu-se a José Barboza Mello, ligado ao Partido Comunista e então diretor da Editora Leitura, onde deixou os originais da obra para publicação. É interessante a forma como Barboza Mello a descreveu: Era uma menina de cabelos soltos, cacheados, 1.50 de altura. 48 quilos de peso, rosto bonito de ingênua, fala suave e uma timidez inconcebível numa adolescente que queria ser escritora. “Estrada da Liberdade”, lan-çado no final de 1944, foi um sucesso. É a história de Marina, uma me-nina vinda da cidade de Simão Dias e que vai estudar em Salvador.
Após se formar em professora, leciona num bairro proletário da cidade e ali, após vivenciar o drama daquele povo oprimido, revolta-se com as injustiças sociais. Ali ela descobre que o aprendizado que lhe incutiram foi dirigido para o interesse dos ricos e poderosos.
Comenta-se que em menos de dois anos toda edição dessa obra foi esgotada, fruto, também, da contribuição das freiras do Conven-to da Soledade, onde Paim estudou e que eram as maiores comprado-ras na Bahia. Não era para ler, mas para queimar, pois elas não gosta-ram das críticas de Alina ao sistema de ensino. Alina Paim esteve à frente de seu tempo em toda a sua obra de crítica social, transmudando-se sempre em personagens que retratam mulheres firmes, independen-tes, rebeldes e revolucionárias, que lutam contra a opressora sociedade patriarcal. Assim como ela foi Marina, em “Estrada da Liberdade”, era, também, Maria do Carmo em “Simão Dias”, obra prefaciada por Gracili-ano Ramos; incorporou Raquel, a sobrinha do senhor de Engenho, em “A Sombra do Patriarca”; e viveu o mundo de Ester, em “Sol do Meio Dia”, obra prefaciada por Jorge Amado. Alina Paim nasceu na cidade de Estância em 1919, filha de Manuel Vieira Leite e Maria Portella de An-drade Leite. Com menos de um ano vai residir com seus pais em Salva-dor. Aos seis de idade, perde a sua mãe, indo, então, morar com suas tias paternas em Simão Dias-SE. Retorna a Salvador, onde conclui os seus estudos no magistério e passa a lecionar. Casa-se com o médico Isaías Paim e muda-se para o Rio de Janeiro em 1944. Morreu em 2011, na cidade de Campo Grande-MT. Alina escreveu várias outras obras, como “A Hora Próxima” (1955), “A Trilogia de Catarina” (1965) – composta pelos romances “O Sino e a Rosa”, “A Chave do Mundo” e “O Círculo” -, “A Sétima Vez” (1975) e “A Correnteza” (1979). Escreveu vá-rias obras infantis entre 1962 e 1966 e recebeu diversos prêmios por sua produção cultural.
Foi tradutora de obras russas e teve os seus livros publica-dos em vários países. Sem medo de errar, Alina Paim foi a pioneira do romance de crítica social no Brasil. O ano passado fiz uma singela ho-menagem ao seu centenário de nascimento, veiculando na rede social uma queixa aos órgãos de cultura do Estado que deixaram passar em branco essa data. Na verdade, fui injusto com algumas pessoas que têm estudado, divulgado e incentivado trabalhos acadêmicos sobre essa fi-gura grandiosa da nossa literatura, que deveria estar na galeria das grandes escritoras brasileiras, ao lado de Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, Cecília Meireles e Lygia Fagundes Telles. Mas, tardiamente, presto minha homenagem à professora Ana Maria Leal Cardoso da UFS, que teve a felicidade de entrevistar Alina em Campo Grande, dan-do uma significativa contribuição para a nossa geração conhecer melhor a nossa literata estanciana. Outro que merece todos os encômios é o
pesquisador Gilfrancisco, um entusiasta da obra de Paim. Na verdade, os alunos da professora Ana Maria Leal Cardoso, que produziram teses sobre a obra de Paim, tornaram-se apaixonados pela sua produção e pela força dessa mulher sergipana. Mais que observadores literários, esses e os novos estudiosos de Paim passam a ser admiradores fervo-rosos do seu talento. É preciso continuar o resgate da obra de Paim, fa-zendo com que haja uma mudança no perfil adotado pela historiografia do romance no Brasil, que a desconhece. Alina Paim, deu ao mundo o melhor dela. Se isso não foi significativo, ela deu o melhor assim mes-mo, procurando mostrar que todos nós somos filhos da terra e merece-mos uma vida de igualdade, fraternidade e liberdade.
Clóvis Barbosa escreve aos sábados, quinzenalmente.