Ricardo Lacerda*
Professor do programa de mestrado de economia da UFS
Uma das definições centrais do governo Biden é o entendimento de que é imperativo para os EUA retomarem a liderança dos investimentos nos setores estratégicos, aqueles de elevados conteúdos tecnológicos e que deverão nortear a expansão da economia mundial nas próximas décadas. Dois segmentos de atividades receberam atenção especial no American Job Plan, o plano de desenvolvimento econômico e social para os próximos oito anos: a produção de veículos elétricos, atividade em que o país teria acumulado defasagem significativa em relação à indústria chinesa; e, aquilo que o documento chama de tecnologias críticas para competitividade futura e para a segurança nacional, abrangendo as novas tecnologias de inteligência artificial, a biotecnologia e a computação, mais especificamente a produção de semicondutores e as tecnologias de comunicação avançada (5G e 6G) que constituirão as estradas futuras do tráfego de informações em todo mundo.
Made in América
O American Job Plan almeja não apenas que os EUA liderem o desenvolvimento dessas novas tecnologias como entende ser necessário manufaturar no território norte americano, ou no máximo em países que são tradicionais parceiros da aliança ocidental, aqueles bens que formam os elos essenciais das cadeias de suprimento dessas atividades.
A atenção dada no plano para a fabricação interna, o recorrente apelo para o Made in America, assume papel central na estratégia de desenvolvimento e significa uma importante virada na compreensão sobre o papel crucial da indústria manufatureira, tanto para impulsionar o crescimento econômico de longo prazo, quanto para gerar internamente os empregos de qualidade que foram perdidos com a migração da atividade manufatureira para o leste asiático, desde os anos noventa do século passado.
Retomada do Estado de Bem-Estar Social
Está explícito no American Job Plan o objetivo de retomar, ainda que em versão atualizada, a economia do bem-estar social dos trinta anos gloriosos (1945-1975), que foi desmontada ao longo das décadas de globalização desregulada e da hegemonia da ideologia neoliberal. Disseminou-se em amplos setores da sociedade norte americana a percepção de que a economia neoliberal fracassou rotundamente em promover crescimento econômico relativamente estável, sustentável em termos ambientais e inclusivo em termos sociais. Pelo contrário, de forma célere, as desigualdades de renda se ampliaram nos anos de hegemonia neoliberal e os mecanismos de solidariedade social foram fragilizados.
A versão contemporânea do estado de bem social é apresentada como o Green New Deal, um novo contrato social em que as questões ambientais assumem papel central, mas que é herdeira inequívoca dos programas sociais da era Roosevelt (New Deal) -Eisenhower e da Great Society, de Lyndon Johnson.
Perda da liderança industrial
Desde os anos noventa do século passado, a China vem ganhando participação em ritmo acelerado na produção mundial da indústria manufatureira. Segundo estimativa da UNIDO- Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial, a participação da China no valor adicionado da indústria manufatureira saltou de 4%, em 1990, para 31,7%, em 2020, enquanto a indústria manufatureira dos EUA viu sua participação se retrair no período de 21,8% para 16% (Ver Gráfico).
A perda de participação norte americana na produção mundial de manufaturas, em processo similar ao que se verificou nas maiores economias ocidentais, não decorreu tão somente do crescimento mais acelerado do PIB da China e de outros países do leste asiático. Refletiu também a perda da participação da indústria manufatureira na própria economia norte americana, recuando, segundo estimativa da OCDE, de 16,7% do valor adicionado, em 1997, para 11,3%, em 2019. Ou seja, nos trinta e dois anos que separam 1997 e 2019, a indústria manufatureira norte americana perdeu cerca de 1/3 de sua participação na riqueza nacional.
O incentivo à retomada da produção interna da indústria manufatureira é componente fundamental na estratégia do Governo Biden para construir o novo estado de bem-estar social. O ponto central parece ser refazer os vínculos, que foram debilitados nos anos de hegemonia de economia desregulada, entre crescimento da produtividade econômica, geração de bons empregos, aumento da arrecadação tributária e ampliação do estado de bem-estar social. O desafio se situa em compatibilizar tais objetivos com o papel disruptivo das novas tecnologias de informação e comunicação.
A aposta parece estar em mais e não em menos regulamentação das relações de trabalho e na organização da produção por parte do estado. Os anos de supremacia das finanças em relação à produção parecem ter ensinado que a atividade industrial importa e que ela cumpre papel central na articulação entre o incremento da produtividade, geração de bons empregos e fortalecimento do estado de bem-estar.
*Assessor Econômico da Secretaria Geral de Governo de Sergipe e integrante da ABED- Associação Brasileira de Economistas pela Democracia