“ATÉ QUANDO ESPERAR”? O Relatório da Comissão Estadual da Verdade “Paulo Barbosa de Araújo” e a memória dos “passados atrozes” em Sergipe

Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá
Professor do Departamento de História da UFS

A interpelação da memória dos “passados atrozes” na história de Sergipe, com a criação da Comissão da Verdade “Paulo Barbosa Araújo” (2015), fruto do desenvolvimento do conceito legal de “direito à verdade”, foi de grande valia para que os historiadores compreendessem a impossibilidade de construir uma descrição neutra do passado e do presente “na gestão ético-política do passado coletivo”. Ao rejeitar a amnésia, as comissões de verdade “se voltam à ‘história’ para pacificar a incômoda força da ‘memória’. A história, então, é introduzida no campo da justiça transicional, não apesar de uma memória excessiva, mas por causa dela” (BERVENAGE, 2018: posição 786, 788 e 919).

No Brasil, a memória hegemônica, que definiu a narrativa oficial das instituições da Nova República, foi construída a partir da interpretação de que a Lei da Anistia (1979) foi um “pacto de reconciliação nacional” (NEVES, 2019: p. 295). Essa narrativa, por conseguinte, delineou os passos da Justiça de Transição, que, em continuidade à “governabilidade” dos governos civis durante a redemocratização, foi pautada pela “política do possível”, preterindo a luta pela justiça, em relação aos crimes da ditadura, em nome do direito à memória e à verdade (TELES, 2018: p. 52).

Essas determinações delimitaram as ações memoriais tanto da comissão nacional da verdade (2012-2014), quanto da Comissão Estadual da Verdade (2015-2020), no Estado de Sergipe. No caso da comissão sergipana, a longa luta dos movimentos sociais da memória pela sua efetivação não encontrou o devido apoio institucional por parte do governo estadual, o que impossibilitou o cumprimento dos prazos estabelecidos pelo decreto de criação, estendendo seus trabalhos até o ano de 2020. Além das inúmeras dificuldades de acesso documental em instituições estatais, como no caso das militares, que impediram essa consulta, em alguns momentos do trabalho, a exoneração dos cargos em comissão dos membros também trouxe descontinuidades.

O acervo de documentos sensíveis, produzido pelos testemunhos de vítimas e de sobreviventes na comissão, traz consigo “um conhecimento específico, dificilmente auferido fora do depoimento”, cujo implicação vai além da análise histórica, por suas “dimensões jurídicas, políticas, psíquicas e éticas” (ARAÚJO, 2020: p. 30, 16 e 17).

A interpelação desses documentos na sociedade incomoda e produz dissonâncias naqueles que optaram por esquecer a memória da violência política, como os citados defensores da memória hegemônica na transição à democracia. Mas também nos fazem refletir sobre os aspectos éticos e políticos do “compromisso profundo com a democracia e, sobretudo, com a prática orientada pela empatia e pela valorização dos Direitos Humanos” (ARAÚJO, 2020: p. 33).

Sob o imperativo “dever de memória”, a ideia veiculada no site oficial da Comissão de que “lembrar momentos que não devem jamais retornar à cena” nos remete a determinada concepção da história como “mestra da vida”, entendida como uma “orientação para o futuro ou, ainda, (…) como matriz para posicionamentos éticos e políticos” (BAUER, 2017: p. 92 e 94).

Essa ideia de história coloca o passado como imposição ao futuro de “um sentido já inscrito no passado”, o que não se coaduna com a proposta de “pensarmos com liberdade o futuro que queremos”. O futuro, como o passado, não resulta “de uma natureza da História, mas das escolhas dos homens na História” (GUIMARÃES, 2001: p. 36).

Desse modo, a obtenção da verdade e da justiça com os direitos humanos não é uma referência que pertence à história como passado, mas que “remetem a algo muito mais amplo que as violações que ocorreram em tempos de ditaduras”. O direito ao trabalho e “toda a gama de direitos econômicos, sociais e culturais, assim como as reivindicações territoriais por parte dos povos originários, são parte da agenda de direitos humanos” no presente (JELIN, 2014: p. 234).

Quando um general do Exército, Eduardo Villas Bôas, que foi Comandante do Exército Brasileiro no governo de Dilma Roussef e, depois, ministro da Defesa, no governo de Michel Temer, sem nenhuma desfaçatez, reafirma o golpe contra a soberania popular nas eleições de 2018, em continuidade ao impeachment contra Dilma Roussef, em 2016, percebemos que nem o golpe de 1964 nem a ditadura militar transformaram em história” (STARLING, 2019: p. 341). A tutela militar na república brasileira foi demonstrada com todas as letras em seu livro-depoimento para o Centro de Documentação e Pesquisa da História do Brasil Contemporâneo, da Fundação Getúlio Vargas, evidenciando o permanente golpismo nas hostes do alto comando das Forças Armadas.

Portanto, a divulgação do relatório final da Comissão Estadual da Verdade “Paulo Barbosa de Araújo” é fundamental para que a sociedade sergipana reflita esses nexos entre o passado ditatorial e os impasses atuais da democracia, no sentido do fortalecimento da cultura política democrática, em meio aos retrocessos do projeto autoritário defendido pelo governo Bolsonaro.
Como nos alertou Paulo Barbosa de Araújo,

Fala-se em todas as instituições, e mesmo fora delas, em democracia e liberdade, mas no âmago das pessoas, essas palavras são vazias, uma espécie de palavras ocas, que precisam ser devidamente preenchidas. A nossa esperança é que não a preencham com o sangue dos inocentes e o cimento das vítimas de todo o tipo de tortura, (…) como faziam os nossos antepassados” (ARAÚJO, 2010: p. 258).

Até quando esperar a divulgação oficial do relatório final da Comissão da Verdade que leva o nome desse jornalista?

BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. História Oral e Memória da Ditadura Militar: o papel dos testemunhos. In: GOMES, Castro de Angela (org). História oral e historiografia: Questões sensíveis. São Paulo: Letra e Voz, 2020.
ARAÚJO, Paulo Barbosa de. Os ícones de um terremoto: Golpe military, repressão e resistência política. Aracaju: Editora Diário Oficial, 2010.
BAUER, Caroline Silveira. Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2017.
BERVENAGE, Berber. História, memória e violência do Estado: Tempo e Justiça. Serra/ES: Milfontes; Mariana/MG: SBTHH, 2018 (e-book).
COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE “PAULO BARBOSA DE ARAÚJO”. https://www.cev.se.gov.br/index.jsp. Acesso em 25/02/2021.
GUIMARAES, M. L. L. S. Usos da História: refletindo sobre identidade e sentido. História em Revista, Pelotas, v. 6, p. 21-36, 2000.
JELIN, Elizabeth. Memoria y democracia. Una relación incierta, Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, Universidad Nacional Autónoma de México Nueva Época, Año LIX, n. 221, mayo-agosto de 2014, p. 225-242.
NEVES, Raphael. Uma Comissão da Verdade no Brasil? Desafios e perspectivas para integrar direitos humanos e democracia, Lua Nova, São Paulo,2012, p.155-185.
STARLING, Heloísa Murgel. O passado que não passou. In: Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 337-354.
TELES, Edson. O abismo na história: Ensaios sobre o Brasil em tempos de Comissão da Verdade. São Paulo: Alameda, 2018.

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