Brasil, democracia e a violência política

José Vieira da Cruz
Historiador, professor da UFS e membro do IHGSE

Na relação entre o Estado e a sociedade, garantir a segurança individual e coletiva é um princípio fundamental. Mas, quando ocorre a extrapolação dos agentes de segurança, o Estado é questionado. Neste sentido, acontecimentos como os que ocorreram durante o período da ditadura civil-militar, dentre os quais o caso do sindicalista Milton Coelho que perdeu a visão em sessões de tortura, são assustadores – pois os direitos humanos são desconsiderados, esquecidos e a confiança da população no Estado e em seu poder de promover a segurança pública é abalada.

Recentemente, uma manifestação democrática e ordeira contra posturas, atos e medidas do governo federal também foi duramente reprimida pelo Estado, através de seus órgãos de segurança. As duas ações, embora ocorridas em momentos históricos diferentes e distintos, tiveram resultados semelhantes: a perda da visão de cidadãos indefesos e a afronta aos direitos humanos e à sociedade. O primeiro caso, Milton Coelho de Carvalho ficou cego, no segundo, um cidadão perdeu a visão do olho
direito e o outro, a do esquerdo. Diante destes fatos, o que esperar, na atualidade, de um governo democrático?

A não identificação, responsabilização e punição de atos de violência política é um risco para a democracia. Em torno desta reflexão, não bastassem a tragédia das centenas de milhares de mortes provocadas pela pandemia do Covid-19, temos assistido ataques às instituições democráticas, repressão política baseada no espectro da Lei da Segurança Nacional e, como consequência, ameaças às liberdades coletivas e à banalização da vida. Frente a esta dura constatação apresentamos uma
reflexão acerca dos dois acontecimentos acima citados, pois possuem profundos significados.

O primeiro deles foi extraído do memorando nº 667/1985, enviado pelo Gabinete do Ministro do Sistema Nacional de Informação (SNI) para o Centro de Informações do Exército (CIE), mais conhecido como CiEx, em 17 maio de 1985. O assunto mencionado foi o processo movido por Milton
Coelho de Carvalho – funcionário da Petrobras, sindicalista, comunista, “ex-preso” político e classificado pelos órgãos da segurança e informações como “subversivo”.

Na petição inicial, Carvalho requereu do Estado Brasileiro indenização pela cegueira permanente da qual foi acometido em decorrência do seu sequestro, prisão e tortura sofridas por ele durante a
denominada Operação Cajueiro, realizada em Aracaju, Sergipe, no dia 20 fevereiro de 1976, sob as determinações do General Adir Fiuza de Castro, Comandante da 6ª. Região Militar do Exército Brasileiro, no contexto da ditadura civil-militar.

O referido processo, movido junto à 5ª Vara da Justiça Federal na Bahia, foi apresentado pela advogada Romilda Noblat, conhecida por desempenhar um papel fundamental na defesa dos direitos dos presos
políticos. As testemunhas, neste processo, foram o deputado federal Jackson Barreto de Lima – no então Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB/SE) –, o advogado e presidente do Clube Esportivo Cotinguiba Wellington Dantas Mangueira Marques e o candidato a governador do Estado Marcélio Bonfim Rocha – na época no Partido dos Trabalhadores (PT/SE). Eles, identificaram por unanimidade, conforme o memorando, o Coronel “Oscar” e o Major “Ribeiro”, que no período em
que a ação foi movida, estavam destacando no I Exército, no Rio de Janeiro/RJ, como responsáveis pelas lesões físicas e emocionais deferidas contra Carvalho. No memorando, a autoridade do SNI registra a afirmação das testemunhas quanto aos nomes do mencionado Coronel e do Major
como “factícios (sic)” responsáveis pelos atos de tortura, lesão e mutilação. O memorando, disponível no acervo do Arquivo Nacional, também destaca o comentário atribuído pela imprensa ao Procurador da República, João Oliveira Maia, que após examinar os autos do processo teria dito:
“Não havia o que defender”, após a audiência transcorrida em 15 de abril de 1985.

Uma avaliação em si bastante reveladora do significado do caso. A evocação desse ato bárbaro, de triste memória, ajuda a compreender a gravidade da repressão policial imposta, em outro
acontecimento, a dois cidadãos brasileiros, no sábado, 29 de maio de 2021, em Recife, Pernambuco, por ocasião das manifestações pacíficas em prol de mais vacinas, por auxílio emergência de R$ 600,00 e contra a política negacionista do atual governo federal.

No episódio ocorrido em Pernambuco, em flagrante cena de abuso de autoridade uma vereadora ficou inconsciente – após ser atingida com esprei de pimenta – e dois cidadãos que transitavam pelo local foram atingidos no rosto e sofreram mutilações nos olhos. Eles foram atingidos sem justificativa, a queima roupa e a curta distância por balas de borracha disparadas por agentes das forças de segurança pública que reprimiam as manifestações.

Nos dois lamentáveis acontecimentos – na operação de repressão militar denominada de “Cajueiro” e nas recentes manifestações contra o negacionismo, à pandemia e à atual crise econômica-social –, além da mutilação física e da, consequente, necessidade de assistência e de indenização às vítimas, observa-se, em ambos, a persistência da sensação de impunidade dos responsáveis que agem ancorados em um falso, distorcido e equivocado entendimento das leis, da ordem social e do Estado Democrático.

No primeiro acontecimento, a operação militar de caráter secreto, baseado na Lei de Segurança Nacional, sequestrou, prendeu e torturou, conforme registros, cerca de 29 pessoas. Posteriormente, estes presos políticos foram salvos graças às denúncias realizadas pela imprensa que vazou informações dos sequestros promovidos pela referida operação. Anos depois, alguns dos responsáveis pela operação foram “identificados”, mas não foram punidos.

Já no segundo acontecimento, recentemente transcorrido sob as lentes dos meios convencionais de comunicação e das redes sociais, as autoridades da segurança pública de Pernambuco ainda não anunciaram os agentes responsáveis e, sobretudo, não identificaram de quem partiu a ordem para reprimir, atirar e mutilar transeuntes e participantes da manifestação democrática, ordeira e pacífica.

Diante disso, cabem aqui alguns questionamentos. Teria sido, então, os disparos do esprei de pimenta e das balas de borracha um ato de insubordinação? Houve omissão do comando e das demais autoridades? Quem assumirá a responsabilidade pelo cerceamento da liberdade de manifestação e pelas mutilações?

Seja qual for a razão – indisciplina, comando ou insensatez –, os graves atos mencionados atentam contra cidadãos indefesos, contra os direitos humanos e contra o Estado Democrático de Direito. E, como sabemos, não é preciso colocar a mão no fogo e nem dobrar a aposta, para avaliar as consequências de práticas de violência política impunes a partir de ações de alguns agentes de segurança. Não há defesa para atos desta natureza, bem como, de nenhuma outra forma de violência. Portanto, precisamos ficar atentos, solidários e dispostos a criticar, rejeitar e se opor a todo tipo de barbárie contra cidadãos, a sociedade e a democracia.

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