Cadê meu celular? Eu vou ligar para um oito zero.

Maysa Guimarães Leite*
Advogada

“Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Nesses trechos em Maria da Vila Matilde, Elza Soares1, em sua voz marcante como em seus últimos discos, traz um acervo luxuoso de empoderamento e com esse hino de enfrentamento à violência contra mulher. Tema esse que no Brasil, merece uma Lei especial (Maria da Penha), voltou à tona esses dias, com o julgamento da Mari Ferrer. #estuproculposonãoexiste, foi ao topo nas redes sociais, após veiculação de trechos da audiência judicial por parte dos jornais, sobretudo o Intercept.

Algumas críticas foram lançadas à forma como foi veiculado, mas com o uso do lugar de fala do Direito, pensando socialmente o termo e a forma pela qual viralizou, foi necessário. Em verdade, não existe guarida no Direito para o estupro na modalidade culposa (sem intenção) e sim apenas para a dolosa (com intenção). O que ocorreu é que foi ventilada na tese do pedido de absolvição pelo Ministério Público com a explicação de que o possível estuprador, André Aranha, não teria condições de saber se a vítima estava bêbada, ou seja, incapaz de oferecer resistência ao ato.

Sim, apesar do termo “estupro culposo” e, esse não ter sido argumento na sentença do juiz, pois é inexistente no artigo 213 do Código e legislação Penal, o uso deste termo foi um grito. Um holofote que serviu para reflexão da população como oposição à tese de absolvição do Ministério Público. A tese, em que as provas colhidas não foram usadas a favor da parte hipossuficiente, mais vulnerável, foi referendada pelo juiz do caso.

Em verdade, este caso é só uma amostra de como o sistema judiciário brasileiro é em grande parte machista, e que formalmente se permite abusos e essas ofensas em milhares de audiências, em que a vítima é colocada em situação vexatória, ou até mesmo estarrecedora, como para surpresa de muitos, classificou o Ministro do Supremo Federal Gilmar Mendes.

A questão é que é possível que a mídia independente, não tenha escolhido a melhor hashtag dentro da teoria jurídica, mas merece os méritos de trazer por mais de uma semana para grande parte da população, sociólogos e até juristas, um foco para questão da violência de gênero e de como ela é sistêmica. No Brasil a cada oito, 8, oi-to minutos morre uma mulher, vítima de violência de gênero. E isso não é considerado prioridade para o país. Precisamos falar para além do caso da Ferrer, (que merece Justiça), precisamos falar sobre a cultura de estupro.

Entre chuvas de likes, polêmicas entre youtubers e jornalistas – é claro que o debate não deve parar por aí. O último mapa de violência contra mulher registrou em 2018, 29.430 estupros “comuns”, veiculados pela mídia; estupro coletivo, aquele cometido por uma ou mais pessoas contra uma ou mais vítimas, foram registrados 3.349 casos no Brasil. O estupro virtual, que é uma categoria mais atual, em que a mulher sofre ameaça por ter seu corpo exposto nas redes sociais, caso não atenda as exigências libidinosas do abusador, foram nesse mesmo ano de 2018 registrados 137 casos. Não é preciso de um novo mapa para saber que essa realidade tem sido aumentada constantemente.

A cultura do estupro permeia todas as fases da vida da mulher e, especialmente as que ainda estão no início da adolescência. É cruelmente estarrecedor, parafraseando o Mendes, que 43% das vítimas tenham menos de 14 anos. Precisamos ainda de um foco de luz para violência doméstica, uma vez que 49,8 % das vítimas de estupro são operacionalizadas por parentes e companheiros.

Quem aqui não assistiu as imagens da Audiência da Mariana Ferrer, em que ela teve a coragem de denunciar? Foi frustrante para quem tem um mínimo de humanidade, ver o advogado Claúdio Gastão proferir discurso machista e misógino, com a anuência do Ministério Público e do Juiz. Ou quem teve uma sensação de desânimo de se levantar contra a violência, por conta do desfecho da mais nova série policialesca da Netflix, “Bom dia, Verônica”? São dois exemplos em que parece perigoso denunciar e é, mas joga contra toda uma campanha árdua sobre a cultura do estupro em que setores da sociedade civil organizada vêm construindo heroicamente o direito da mulher falar, denunciar e se libertar.

Como citou a Djamila Ribeiro, em seu artigo para a folha ilustrada, é importante avançarmos com a contribuição de estudos e ações da União de Mulheres, Geledés, Rede Feminista de Juristas, Mapa do Acolhimento, a Associação Quilombola Kalunga e, acrescento o trabalho das Comissões de Direitos das Mulheres das seccionais da OAB de cada Estado, além de setoriais e militantes da causa.

No mapa da violência contra a mulher2 existem essas indicações essenciais: para quem sofre a violência doméstica é importante se fortalecer psicologicamente, para ser possível fazer uma denúncia numa delegacia, o chamado BO, boletim de ocorrência. Se for em caso de estupro é preciso observar se está machucada e ir ao hospital, lá serão feitos os cuidados médicos, distribuídos medicamentos que previnem doenças sexualmente transmissíveis e, pílulas do dia seguinte para evitar uma gravidez.

Nesses casos em que há machucados, só depois ir à uma delegacia para fazer o BO, que é requisito para que seja possível fazer o exame de corpo de delito no IML (instituto médico legal) Por esse motivo, por mais humilhante que seja e é, a indicação é que a vítima não tome banho, para que sejam colhidas algumas provas que serão importantes posteriormente como sêmen, para identificação do autor. E há a recomendação de que as roupas sejam guardadas, também para efeitos de investigação. Se a vítima for menor de idade, o conselho tutelar pode ser acionado para a sua proteção.

A cultura do estupro e a violência contra a mulher tem como princípio norteador a desigualdade social existente entre homens e mulheres. Para a pesquisadora Silvia Federici3, na transição do feudalismo para o capitalismo a mulher servia para procriar que a reprodução somado ao trabalho doméstico não remunerado, permitiu aumento do número de pessoas aptas a potencializar a acumulação primitiva, ou seja, o capitalismo no mundo.

Ao olharmos nosso redor, é fácil perceber que muitas mulheres são vistas como indivíduos inferiores e, muitas vezes, como objeto de desejo e de propriedade do homem – o que autoriza, banaliza ou alimenta diversos tipos de violência física e psicológica, entre as quais o estupro. ”Ela estava pedindo, olha essas ações”, “ela estava de saia curta”, “ela não deveria sair sozinha”, “ela não deveria estar na rua naquela hora”, “ela não deveria ter bebido” ou “ela é uma mulher fácil”.

Um outro ponto nessa cultura que merece nosso olhar é a gritante violência contra mulher negra, hiper sexualizada e objetificada. Esse ponto é sustentado por Ângela Davis4, em sua obra: Mulheres, Raça e Classe, o qual compreende que as categorias estruturais raça, gênero e classe não devem ser vistas de forma dissociadas. Portanto, é de fundamental importância que o conceito de interseccionalidade seja considerado nas análises conjunturais, para que sejam construídas práticas que visem o rompimento do padrão eurocêntrico de enfrentamento da cultura de estupro.

Que usemos nossas vozes, muitas vezes privilegiadas, para dizer o que se cala. Chimamanda Adichie em sejamos todos feministas, traz a máxima de que a cultura não faz as pessoas, as pessoas fazem a cultura, de modo que se uma humanidade de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos de mudá-la. Que por meio de uma pedagogia emancipatória, sejamos uma nova prática. As escolas desde o primário, universidades e até as escolas formadoras do judiciário devem assumir essa responsabilidade, com leituras e formações entre os seus, para que alcancemos o ideal igualitário da constituição federal, com vez e voz às mulheres.

*Membro de assessoria jurídica popular Luiz Gama e mestranda em Ciências Políticas no ISCTE-IUL. Instituto Universitário de Lisboa.

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