Cezar Britto*
Advogado e escritor
Jaci estava muito feliz naquela noite. Logo cedo ela recebera a visita de Ceuci, a protetora das lavouras e das moradias indígenas. Ela trouxera para Tupã uma enorme quantidade de frutas nativas e plantas medicinais.
Na grande mesa da cozinha de sua casa, Jaci expôs uma boa diversidade deles. Certamente Emanuel e Oxalá ficariam encantados com a qualidade dos produtos presentados. Jaci sabia que eles chegariam em alguns minutos, como sempre faziam nos dias em que Ceuci e seu filho Jurupari apareciam na redondeza. Enquanto os aguardava, Jaci preparava para os amiguinhos um refrescante suco do recém-chegado guaraná. Ela sabia que Oxalá nunca recusaria a possibilidade de sorver do poder revigorante e energético do guaraná, assim como Emanuel não deixaria de descrever as propriedades medicinais do fruto amazônico.
– Ô de casa! – escutou-se as vozes de Emanuel e Oxalá, acompanhadas de ritmadas palmas.
– Pois não? – gritou Jaci da cozinha, fingindo não saber quem eram os visitantes
– Quem mais poderia ser? – respondeu Emanuel, entrando na casa, em sorriso largo. – Os destinatários do suco que você está fazendo. Você sabe que nunca perdemos a oportunidade de apreciar as coisas que Ceuci colhe e compartilha com a humanidade.
– Sei! Mas me tire uma dúvida que sempre esqueço de esclarecer – mostrou-se intrigada Jaci. – Como vocês sabem quando Ceuci nos visita?
– Você lembra da história de Sansão e Dalila? Está lá em Juízes 16:4-6 – gargalhou Emanuel. – É arriscado quebrar um segredo do Senhor.
– Tudo bem! Com segredo e sem suco – fingiu-se zangada Jaci.
– Esse negócio cerimonioso com o segredo é coisa de Emanuel – interveio, alegremente, Oxalá. – Não abro mão do seu suco por nada, Jaci.
– Ótimo! Vá contado Oxalá. O seu suco está super garantido – divertiu-se Jaci.
– É muito simples Jaci. Quando a estrela mais brilhante da constelação de Plêiades aparece radiante no céu, é sinal de que Ceuci está aqui – explicou Oxalá. – E nunca erramos uma vez sequer.
– E eu pensando que vocês estavam com segredinhos com Anhum – confessou Jaci. – Eu achava que tocava alguma música no Sacro Taré para avisar a vocês.
– Segredos revelados, o que Ceuci trouxe dessa vez? – perguntou Emanuel.
– Além do guaraná, elas nos brindou com açaí, bacuri, buriti, cupuaçu, castanha amazônica, caju, jabuticaba, abacaxi, goiaba, maracujá, pequi, ouricuri, ingá, carambola, mangaba, graviola e tudo que se possa imaginar no tabuleiro do Brasil – exibiu-se Jaci. – Mas você quer saber das plantas medicinais, não é Emanuel?
– Ela trouxe copaíba? – apressou-se Emanuel. – Você sabe que eu gosto muito de plantas medicinais.
– Claro que sei! – riu Jaci. – E já separei para você uma arupemba cheia de copaíba, andiroba, urucum, cipó miraruira, cipó unha de gato, marapuama, quebra-pedra, boldo, aroeira, cajazeiro, pindaíba e jurubeba.
– E para mim? Nada? Adoro alecrim, camomila e girassol – interveio Oxalá, fingindo-se zangado. – Os orixás também gostam de plantas medicinais. Iansã até me pediu para trazer, caso tenha, romã e bambu. Oxóssi e Exu querem cana-de-açúcar e Oxum quer camomila também.
– Ainda bem que Ceuci é generosa e trouxe tudo em grande quantidade. Acho até que ela já deixou tudo separado para vocês – esclareceu Jaci, bem-humorada. – Emanuel, você sabia que muita gente acha que Ceuci é a sua mãe.
– Claro que sei, Jaci. E gosto muito dessa comparação. Mas não sei direito a razão – respondeu Emanuel, fingindo não ser onisciente. – Qual é mesmo a razão?
– As pessoas dizem que ela ficou grávida de Jarupari quando comeu o fruto de cucura-purumã – esclareceu Jaci. – Quando ela mordeu a fruta, o sumo desceu pelo corpo da nossa deusa da lavoura, deixando-a grávida.
– A natureza que criamos para os homens é mesmo poderosa, não é? – refletiu Emanuel. – Basta ler a Bíblia e ver como ela está presente.
– Na Bíblia? – mostrou-se curioso Oxalá.
– Não está em Gênesis 2:9, que “Deus fez brotar da terra toda a árvore agradável à vista, e boa para comida; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal”? – respondeu Emanuel. – E também em Êxodo 25:6, quando descrito o uso das plantas para a fabricação de óleo, temperos e incensos: “Azeite para a luz, especiarias para o óleo da unção, e especiarias para o incenso”? Será que a cucura-purumã que Jaci falou não é a Árvore da Vida para a cura as nações, como diz o Apocalipse 22:1-2?
– Sei lá! Mas acho que pode ser. Acho que ouvi um debate de Jeová com Ossaim sobre o uso de ervas medicinais na Bíblia – lembrou-se Oxalá.
– Acredito que sim. Eles conversam muito. E com Ceuci também – concordou Emanuel. – Você sabia, Jaci, que a Bíblia menciona várias outras plantas extraídas da natureza? Vou dizer apenas algumas: salgueiro, lírio da água, violeta, tulipa, sálvia, rosa, ranúnculo, peoni, nigela, narciso, açafrão-da-pradaria, malva, lupina, narciso, mostarda, menta, malva, mandrágora, alho poró, cebola, coriandro, cominho, hissopo e tantas outras.
– Claro que sim, Emanuel. Esqueceu das minhas leituras noturnas sobre os livros sagrados de todas as religiões? – devolveu Jaci, para logo recitar de cor. – O hissopo era utilizado para a purificação (Salmos 51:7), para impedir que o sangue coagulasse (Êxodo 12: 22) e com uso medicinal atestado por João (19: 29 – 30). E não foi mirra o presente que você recebeu de Baltazar assim que nasceu?
– Verdade, Jaci – reconheceu Emanuel. – Você lembra que em Reis 20:7, Salmos 51:7 e 45:8, Gênesis 43:11 e Cantares 2:5 Deus falou dos ilimitados poderes de cura das plantas?
– Lembro sim! – concordou Jaci. – É o que também nos ensinou Ceuci.
– E já escutei Ossaim dizendo que sem ervas não há candomblé ou umbanda – seguiu na mesma linha Oxalá.
– Mas sabe o que é grave? – indagou Jaci. – É que nós colocamos as plantas no mundo e a ganância do homem não permite que todos a usem?
– Como não? – estranhou Oxalá. – A natureza não é de todos?
– Em tese sim. Mas surgiram os grandes laboratórios farmacêuticos e mudaram tudo – concluiu Jaci. – Foi a minha tia Guaipira quem me contou essa história, após receber uma carta escrita por tia Açuti.
– E se Açuti escreveu, não tem erro – concordou Oxalá. – Ela sabe como narrar a ganância humana.
– Pois é, essa turma diz que as plantas não curam e são inofensivas crendices populares – seguiu Jaci em seu raciocínio. – Só vale o que é lucrativo enquanto droga sintética autorizada.
– Infelizmente é verdade, amigo! – interveio Emanuel. – Retiram o princípio ativo de tudo que criamos, patenteiam como se fossem criações deles e só permitem o uso para quem possa pagar.
– A ganância do homem é de preço ilimitado mesmo – encerrou, tristemente, Jaci. – Eles conseguiram comercializar até mesmo os nossos ensinamentos sobre as plantas. E para o mal da ganância ainda não achamos a cura.
*Autor de livros jurídicos, romances e crônicas. Ex-presidente da OAB nacional e União dos Advogados da Língua Portuguesa. Membro vitalício do Conselho Federal da OAB e da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.