Ciclos repressivos contra professores universitários pelo regime militar

Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS

O historiador Rodrigo Patto publicou há quatro anos um livro sobre a relação entre as universidades e a ditadura militar (MOTTA SÁ PATTO, Rodrigo. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014) tornado imediatamente num clássico. Até onde vai nosso conhecimento sobre a matéria, não existia nada semelhante no mercado editorial brasileiro. Depois de alguns anos de pesquisa, ele conseguiu, usando fontes documentais e entrevistas sobretudo, pôr de pé um livro que trata da relação mencionada como um todo, com o que dizemos que enfoca dirigentes, professores, estudantes universitários e servidores no período de 1964 a 1985.

O livro nos agradou bastante, mas nós não vamos fazer a sua resenha. Ainda assim, queremos dar mais algumas informações sobre ele para o leitor interessado. O sumário do livro de Patto praticamente oferece um roteiro para pesquisadores que desejem abordar o tema nos diversos estados brasileiros, tendo concentrado a sua atenção nas grandes universidades brasileiras (USP, UFRJ, UNB, UFRGS, UFMG etc.). Ele trabalha com um quadro teórico que toma a cultura brasileira como tendo “marcas centrais a flexibilidade, a recusa a definições rígidas e a negação dos conflitos, que são evitados ou escamoteados por meio de ações gradativas, moderadoras, conciliatórias e integradoras”. Isso é dito na introdução da obra.

A nossa releitura do livro do historiador mineiro partiu da constatação da ausência de estudos que abordem o problema da repressão do regime militar sobre os professores universitários no período em questão. Desde que tomamos como interesse pesquisar sobre o regime militar, percebemos que historiadores e outros acadêmicos têm escolhido para suas pesquisas o maior protagonismo dos estudantes universitários, sobre o que já existe uma bibliografia considerável no Brasil. Mas, enquanto professor universitário, sentíamos falta de um livro que focasse nessa categoria de professores de forma aprofundada. Foi isso o que fomos buscar na obra de Rodrigo Patto.

No livro de que estamos a tratar, o seu autor dedica dois capítulos a propósito da repressão contra os professores universitários de diversas universidades federais – embora neles também aborde outros grupos como dirigentes, estudantes e servidores. “Operação limpeza” e “O novo ciclo repressivo” são os seus títulos, sendo o primeiro relativo ao ciclo repressivo ocorrido em 1964 e o outro em 1969.

A nossa intenção aqui é pôr em relevo as principais práticas repressivas (aposentadorias compulsórias, demissões, pressões para afastamento, detenções, torturas, etc.) dos militares e dos demais agentes da repressão contra os professores das grandes universidades federais brasileiras. No capítulo 7 do livro, Patto apresenta uma tipologia dos agentes universitários que, como já o dissemos acima, rompe com velhos modos de tratar do assunto, classificando-os como adesistas, colaboradores e acomodados. Ler isso foi importante para nosotros porque sempre trabalhamos com a oposição entre resistentes e colaboradores (resistência e colaboração), seguindo a classificação inspirada na França ocupada pelos nazistas durante a II Guerra. Existe outra classificação muito útil mencionada pelo autor que reúne os mesmos professores em três grupos: dirigentes, professores ordinárias e elites científicas.

A repressão aos professores universitários era fundamentada pelos militares a partir de um diagnóstico muito simples: se havia professores simpatizantes de ideias de esquerda, marxistas ou não, vinculados ou não a partidos e a organizações de esquerda, militantes ou não, eles deveriam ser afastados do espaço universitário. Por que assim? Os militares entendiam que as universidades federais eram espaços de recrutamento de estudantes para os grupos de esquerda. E os professores tinham tudo a ver com isso.

Os militares dedicaram especial atenção aos professores dos cursos universitários que tinham maior proximidade com a realidade social, ou seja, os cursos das ciências sociais e humanas. Era nesses cursos que havia uma maior “esquerdização” da juventude universitária – embora em cursos das ciência natureza seus professores também fossem visados. O curioso é que o autor mostra que, em alguns casos, eram os estudantes que sensibilizavam os professores para as ideias de esquerda. O que fazer diante de um tal quadro encontrado com o golpe de 1964? Reprimir esses professores, homens e mulheres, dos espaços universitários foi a resposta encontrada pelos homens das casernas.

No primeiro ciclo repressivo sobre os professores universitários, ocorrido em 1964, os militares intervieram em seis (6) reitorias de universidades, isto é, UFPB, UFRGS, UFRRJ, UFES e UFG, sendo, nesses casos, os seus reitores afastados e, em outros mais, levados a afastar-se ou a renunciar (como no exemplo da UFPE). Isso também aconteceu em escolas superiores, faculdades e institutos de pesquisa. Os militares providenciaram em seguida a abertura de Inquéritos Policiais Militares (IPMs) e fizeram autoridades universitárias constituir comissões de sindicância ou comissões de inquéritos em suas próprias universidades.

Teve lugar, assim, uma ampla “degola” de professores em todas as regiões do país, em algumas universidades mais do que outras. Não é demais lembrar que esses expurgos obedeciam a critérios ideológicos e o número de atingidos girando em torno de cem pessoas. Para não cansar o leitor com a enorme lista de professores atingidos pelas medidas repressivas, citaremos alguns nomes mais conhecidos: Wanderley Guilherme dos Santos, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Herbert José de Souza (Betinho), Simon Schwartzman, etc. Segundo o autor, houve detenções e prisões etc., mas não houve tortura física, só psicológica. Muitos desses professores e outros possuíam algum vínculo com o Partido Trabalhista Brasileiro(PTB), o clandestino mas influente Partido Comunista Brasileiro (PCB) e com a organização Ação Popular (AP) ou professavam ideias de esquerda tout court.

O segundo ciclo repressivo aconteceu em 1969 e não passou senão, na verdade, da continuação do primeiro, posto que os militares achavam que não tinham feito o trabalho completo, ou seja, a obra de repressão tinha ficado inacabada com a permanência ou o retorno de professores ditos esquerdistas aos meios universitários. Dessa feita, num momento de radicalização das forças armadas com a edição do Ato Institucional no.5, os militares se serviram de dois instrumentos jurídicos para continuar a “Operação Limpeza”, a saber, Decreto-lei no.477 (quase sempre lembrado como dirigido apenas aos estudantes) e do Ato Complementar no.75 (que proibia contratação de professores punidos por outras universidades públicas e privadas ou por centros de pesquisas.

Também no segundo ciclo, o critério para as ações repressivas foi o ideológico, e, do mesmo modo que no primeiro ciclo, existiram casos de professores que deduraram colegas por razões pessoais, com fundamento real ou falso. Eis aqui algumas universidades que tiveram professores atingidos: UFMG, USP, UFRJ, UFRGS, UNB, UFPB, UFPA, UFBA, UFRN, UFRRJ, UFJF e UFG. Citamos agora alguns nomes de professores atingidos no segundo ciclo: Florestan Fernandes, Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Octavio Ianni Jean-Claude Bernadet, Paul Singer, Paula Beiguelmann Maria Yedda Linhares, entre outros. Quanto aos dirigentes afastados, reitores e diretores, vale listar, entre outros mais, os nomes de Hélio Lourenço, Gerson Boson, Ângelo Ricci, Rodolfo Behring e Lourival Vilela.

Antes de concluir essas anotações, devemos dizer que aqui não foram elencados professores ligados às ciências da natureza, que muitos professores foram obrigados a exilar-se em outros países, que professores foram presos e torturados em quartéis e que só é citado o caso de um professor morto – embora em determinada passagem do livro seja dito que alguns foram mortos. Nos dois capítulos mencionados, o historiador Patto não trata das ações repressivas sobre os professores universitários promovidas pelas Assessorias Especiais de Segurança e Informação. Num balanço muito rápido, é preciso ressaltar que o regime militar causou um enorme prejuízo à comunidade científica brasileira ao impedir que quadros docentes pudessem se reproduzir e praticar o magistério, continuar pesquisas em andamento e desenvolver projetos de extensão socialmente importantes, também brecados. Naturalmente, a direita universitária que já era majoritária nos campi do país inteiro saiu fortalecida desse processo repressivo – da mesma forma que aconteceu com a política partidária.

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