Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS
No meio universitário brasileiro, as faculdades de direito são os espaços em que mais predominam o formalismo. Nós somos assim: é doutor aqui, é data vênia ali, e assim por diante. Temos professores que dão aulas de paletó e gravata, geralmente indo ou vindo do emprego jurídico principal.
Nesses ambientes de tradição e de formalismo que são as faculdades de direito, existem dois currículos, um formal e outro informal. O currículo formal é aquele determinado pelo MEC, com os ajustes pontuais feitos pelas faculdades e tornado lei através de sua aprovação pelos conselhos superiores das instituições de ensino. Já o currículo informal corresponde ao conjunto de atividades de professores e de estudantes que não estão presentes no currículo formal e que são fundamentais na transformação dos aprendizes em bacharéis em direito. Dizendo de outro modo, não é apenas a socialização dos estudantes baseada no currículo formal que é responsável pela construção dos especialistas em direito. Indo àquilo que interessa, quais são as principais atividades do currículo informal passadas numa faculdade de direito?
Podemos dizer que tais atividades curriculares informais passam pela interação entre professores e estudantes dentro e fora das salas de aulas, bem como entre os próprios estudantes. No caso dos professores, um tipo de atividade curricular informal tem a ver com as ocasiões em que eles comentam a conjuntura jurídica para os estudantes, passando para eles, então, seus pontos de vistas sobre o que está acontecendo. Nessas ocasiões eles transmitem e reforçam suas visões de mundo já expressas quando interpretam as leis e códigos para os estudantes. Eles poderiam se abster de fazer tais comentários, mas não o fazem – coisa que, aliás, não é exclusividade dos meios acadêmicos jurídicos.
Os professores de direito são majoritariamente oriundos de profissões jurídicas. Não são só professores. Muitos são ministros de tribunais superiores, outros são desembargadores e juízes, promotores federais e estaduais, advogados de firmas privadas etc. O magistério jurídico é a segunda profissão. Trazem por conta dessa primeira prática profissional experiência acumulada ao longo de suas carreiras em diversos postos jurídicos. Em salas de aula, servem-se dessa experiência profissional para relatar muitos casos e fatos de que fizeram parte, de que foram testemunhas ou de que simplesmente tomaram conhecimento. Esses relatos não estão necessariamente ligados aos temas registrados no currículo formal, mas são muito apreciados pelos estudantes e são fontes de prazer para os professores que falam do alto de sua experiência – experiência que é muito valorizada nos processos seletivos docentes. Eles, os relatos, também são parte do currículo informal.
Não é incomum professores convidarem estudantes para estagiar em seus gabinetes e em seus escritórios em condição remunerada ou não. Hoje em dia são realizados processos seletivos para essas posições de estagiários, embora isso não seja generalizado. Com esse tipo de relação estabelecida, ocorre com frequência a prática do nepotismo e do clientelismo. Os beneficiários desses estágios e assessorias conseguem um bom “empurrão” em termos de seu futuro profissional.
Uma outra prática do currículo informal, que reforça desigualdades, acontece quando os professores reconhecem nas suas turmas pessoas em função de sua origem familiar ou de classe social. São pares reconhecendo pares. Não existe nada demais o professor identificar na lista de estudantes filhos ou parentes de colegas seus, pois, afinal, existem muita tradição de netos, pais e avôs seguiram profissões jurídicas na família.
Quando ingressam nas faculdades de direito, os estudantes levam consigo suas visões de mundo – da mesma que forma que seus futuros professores, com a diferença de que estes já estão formados, são adultos, por mais jovens que sejam. Não começam os estudos universitários como uma folha de papel em branco. Eles trazem noções de certo e de errado, de justo e injusto, lícito e ilícito, entre outras, aprendidas em suas famílias, suas escolas e suas religiões. Também carregam consigo noções da cultura jurídica popular adquiridas através dos diversos meios de comunicação de massas.
Se os estudantes são filhos, têm parentes ou amigos de seus pais inseridos no mercado jurídico do trabalho, é muito possível que tragam informações da cultura jurídica erudita ou oficial. Dependendo de sua faixa etária, podem ter feito concursos públicos que tenham exigido noções da cultura jurídica oficial. Quando possuem pais e parentes integradas nas repartições jurídicas, práticas nepotistas os ajudam a penetrar em espaço jurídico paralelo ao de suas faculdades.
Durante a temporada que passam nas faculdades de direito, muitos são os estudantes que se envolvem em atividades de representação dos colegas junto aos órgãos colegiados de suas escolas e de suas universidades. Por conta disso, aprendem muito cedo a redigir petições, a dar pareceres, a fazer despachos, a sustentar oralmente demandas de seus colegas – independentemente dos estágios curriculares oficiais. Geralmente, mas nem sempre, esses estudantes se engajam em atividades dos diretórios ou centros acadêmicos, daí resultando a participação em reuniões estaduais, regionais e nacionais de associações estudantis de direito, bem como o aprendizado de conduzir assembleias estudantis, de organizar júris simulados, debates, encontros e seminários jurídicos para os próprios colegas ou ainda a prática de extensão jurídica universitária, com o que lidam com casos concretos de conflitos jurídicos.
Todas essas práticas curriculares informais de professores e de estudantes nos levam a concluir que eles possuem uma considerável relevância na formação dos futuros bacharéis em direito. Embora muitas dessas atividades não apareçam nos currículos formais nem nos históricos de avaliações escolares dos estudantes, elas são muito importantes e dão a certeza de que o conjunto de habilidades adquiridas durante o período escolar possa ser bem desigual segundo as práticas curriculares dos estudantes. Isso indica que, se a influência dos professores é bem maior, também há espaço para que os estudantes façam do aprendizado jurídico não uma trilha de mão única, mas dupla, dando-lhe uma dimensão de ação recíproca.