Terezinha Alves de Oliva
Professora Emérita da UFS
Neste tempo de pandemia o necessário isolamento social tem tornado o distanciamento uma obrigação. Um sem número de atividades cotidianas passou a ser feito à distância e já se apregoa que muitas dessas experiências vieram para ficar. O momento impõe a todos, quase sem opção, que se comuniquem, comprem, trabalhem, rezem, divirtam-se e estudem à distância. Do meu isolamento, comecei a pensar em atividades que, em tempos anteriores à internet, já anunciavam o futuro. Como professora, ancorei meu pensamento em experiências de educação e o recente cinquentenário da morte de Dom José Vicente Távora, em 3 de abril passado, me levou às Escolas Radiofônicas, um projeto revolucionário de educação à distância.
Dom José Vicente Távora foi o terceiro bispo da Diocese de Aracaju e o seu primeiro Arcebispo. Pernambucano, amigo e companheiro de Dom Helder Câmara, ele deixou de ser Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro, para assumir a Diocese de Aracaju, em 22/3/1958. Veio para Sergipe trazendo a experiência de uma atuação que combinava a evangelização com projetos de promoção de comunidades pobres, visando à geração de renda, à alfabetização de adultos, à extinção das favelas. Chegou em Sergipe acumulando a fama de bispo dos pobres e bispo dos operários, pelo trabalho na Ação Católica, com a Juventude Operária Católica (JOC).
O ano da sua posse foi também aquele de uma das maiores secas no Nordeste. Em Sergipe, a miséria no campo acentuou o histórico êxodo rural; em todo o Nordeste, a situação de dezessete milhões de pessoas mobilizou os bispos da região em busca de soluções para a miséria e a fome que grassavam. Dom Távora viajou, fez contatos com o Governo Federal e com a iniciativa privada. Enquanto se empenhava, em Sergipe, na construção de uma sede própria para o SAME, na conclusão do prédio da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, na aquisição de novo prédio para o Seminário Diocesano e em ações dirigidas aos então chamados menores abandonados, também tentava trazer programas do Governo Federal para levar educação e informação às comunidades rurais, ao tempo em que estimulava projetos de industrialização em Sergipe, fazendo para isso vários contatos.
O seu biógrafo, Padre Isaías Carlos Nascimento, acentua que em maio de 1959, no Encontro dos Bispos do Nordeste realizado em Natal, Rio Grande do Norte, Dom Távora apresentou projetos que foram aprovados, entre os quais um especialmente gerou grande interesse: “criação do sistema básico de educação por meio de escolas radiofônicas, a funcionar pela Rádio Cultura de Sergipe através da distribuição de rádios receptores especiais, cativos” (Nascimento, Isaías Carlos. Dom Távora, o bispo dos operários. Um homem além de seu tempo. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 139-140) A campanha para a criação da Rádio Cultura de Sergipe fora lançada ainda no ano de 1958, junto com o propósito de tornar o jornal da Diocese, A Cruzada, de semanário em diário. A Rádio seria inaugurada em 21 de novembro de 1959, tornando-se o canal para um movimento capaz de transformar a realidade de um Estado cujos 70% da população eram de analfabetos.
A experiência em educação à distância pelo rádio foi feita primeiro na Diocese de Natal, com Dom Eugênio Sales, inspirado em outras experiências na América Latina, particularmente na Colômbia. O Ministério da Educação, através da Campanha Nacional de Educação de Adolescentes e Adultos, apoiava essa iniciativa. A novidade é que Dom Távora queria expandir o movimento a todo o país, ciente do poder transformador da educação, com os olhos voltados para a situação do campo. Assim seria criado o Movimento Nacional de Educação de Base, MEB, pelo Decreto n. 50.370/61, do Presidente Jânio Quadros, através de convênio entre o Ministério da Educação e Cultura e a CNBB, com Dom Távora como seu Presidente.
O sistema funcionava através da Rádio Cultura de Sergipe e se disseminava por monitores, recrutados e treinados pela Igreja: “os monitores recebiam os rádios cativos, pilhas para os aparelhos e material didático. Esses rádios, do tamanho de uma caixa de sapato, foram fabricados só para captar o sinal da Rádio Cultura, daí seu nome: rádio cativo” (Nascimento, p. 155). As escolas radiofônicas visavam a formação integral, por isso, além de ler, escrever e praticar as quatro operações, o aluno recebia noções de higiene, agricultura, geografia, história, educação doméstica, esporte, recreação, técnicas agrícolas, associativismo, cooperativismo e educação moral, cívica e religiosa.
A aceitação e o entusiasmo popular foram muito grandes. Mas uma nova cartilha, feita por técnicos de todo o Nordeste e publicada no começo do ano de 1964 com o título “Viver é Lutar” foi apreendida pelo governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, que a denunciou como cartilha comunista. Dom Távora assumiu a defesa da publicação como fruto da aplicação dos princípios da Doutrina Social da Igreja, mas teve ali o início do seu calvário. Menos de um mês depois aconteceu o golpe militar. Na vigência da ditadura civil-militar a equipe do MEB foi implicada e o Arcebispo passou a ser vigiado, até a parada definitiva do seu coração, em 03 de abril de 1970.
Dom Távora acreditava que a justiça social seria alcançada pelo progresso econômico e social, mas lembrava aos católicos que o Reino de Deus estava além das necessidades humanas. Assumindo a Diocese de Aracaju num momento crítico de seca arrasadora e defrontando-se com a situação de pobreza extrema da maioria da população sergipana ele, que chegou a ser apresentado por Dom Hélder Câmara como o maior bispo do Brasil, deixou em Sergipe uma obra imorredoura. Os cinquenta anos da sua morte merecem, mais do que uma lembrança, uma homenagem.
*Historiadora e oradora do IHGSE.