E retiraram Keynes da quarentena.

José Roberto de Lima Andrade
Professor do Depto. De Economia da UFS*

O ano de 2020 será lembrado para sempre, principalmente pela quantidade de mortes provocadas no mundo todo pelo Coronavírus. E nesse caso não é uma questão de quantas mortes foram necessárias para que 2020 fique para sempre na história. Sempre há alguém que em momentos como este lembra que mais pessoas morreram em outros momentos e por outros motivos. Há aqueles inclusive que lembram que outras doenças continuam matando mais que o Coronavírus. Atribuir valor a vida, penso eu, é um dos piores debates que pode existir na humanidade. Mas outras questões importantes também irão deixar suas marcas: como a sociedade reagiu em relação ao sofrimento alheio, qual a capacidade de nosso sistema de saúde em lidar com epidemias desta magnitude, qual foi o papel das empresas durante a crise e, principalmente, que medidas os governos no mundo tomaram para combater a crise econômica decorrente da pandemia. São nestes momentos que velhas figuras voltam à tona, enquanto o novo parece não conseguir resolver os problemas.

O Coronavíirus – a “gripezinha” que destrói a economia

O ano de 2020 começou com uma epidemia de vírus na China(o Coronavírus) que rapidamente se espalhou para o resto do mundo (pandemia). O pânico e os impactos econômicos causados pelo Coronavírus são muito maiores do que outras epidemias pelas quais passamos. A resposta pode estar em dois motivos: 1) O elevado grau de contágio do vírus e a consequente sobrecarga para o sistema de saúde, principalmente nos casos mais graves , 2) A experiência atual e os estudos da comunidade científica mundial indicam o isolamento como a forma mais eficaz de evitar a propagação do vírus. Isso significa o fechamento de fábricas, lojas, etc, e as consequências inevitáveis para a economia como um todo.

Projeções iniciais apontam para prejuízos em torno de US$ 2 trilhões de dólares, sendo US$ 220 bilhões somente em países emergentes. O gráfico 1 a seguir apresenta diversas projeções para 2020 quando comparadas a 2019. É o que podemos chamar de “Efeito Coronavírus”. Vale a pena destacar dois países importantes em função do comércio com o Brasil: China e Estados Unidos.

Gráfico 1 – Projeção Crescimento 2020

Fonte: OCDE

Antigas soluções para novos(ou velhos) problemas

Em 1929 o mundo passou por uma crise econômica que é considerada por muitos como a mais longa e profunda recessão econômica da história. Sem entrar em detalhes sobre as suas origens, a forma como o enfrentamento foi feito acabou influenciando na maneira com a qual lidamos com crises econômicas até hoje. O enfrentamento (e a solução) para o combate a crise de 1929 se deu através do aumento dos gastos públicos. Essa “inovação” no combate a crises econômicas deve ser creditada a figura de um importante economista inglês chamado John Maynard Keynes.

Os economistas enxergam o mundo como sendo habitado por 3 “espécies”, denominadas de agentes econômicos: a) as famílias (consumidores em geral) b) as empresas, cujo consumo é chamado investimento, e que na terminologia do cálculo do PIB pelo IBGE é denominado de Formação Bruta de Capital Fixo –FBCF c) O consumo do governo(nos vários níveis, incluindo as empresas estatais, e d) O consumo do “resto do mundo”, que nada mais é do que os consumos dos 3 agentes citados anteriormente residentes em outros países. A estimativa deste consumo é feita pelo saldo entre exportações (+) e importações (-).

Assim, o Produto Interno Bruto – PIB, medida de “saúde” de uma economia pode ser expresso por:

PIB=C+FBCF+G+(EXP-IMP)

A equação apresentada acima é chamada de equação da demanda agregada A base da interpretação de Keynes dos problemas econômicos(crises principalmente) é decorrente de insuficiência de demanda. Em um momento de crise, onde as pessoas estão desempregadas, as empresas não conseguem vender (e consequentemente investir) e o resto do mundo não compra nossos produtos, cabe ao governo através dos gastos públicos evitar que o PIB não caia.

Para alguns economistas, o problema da prescrição keynesiana ante crises é que o remédio pode ser causador de “efeitos colaterais”. Pode criar dependência, ou gerar outros problemas como ineficiência no sistema econômico. É proposto um outro remédio concorrente (dos chamados economistas liberais ou neoliberais), que em síntese considera que é melhor não aplicar a prescrição do Keynes e deixar que os outros agentes econômicos resolvam o problema. E mais – a resolução é sempre mais eficiente e mais rápida que a proposta por Keynes. Desde então, vivemos neste eterno debate que transcendeu da economia e passou para o mundo da política, muito embora, principalmente no Brasil, ser keynesiano ou liberal às vezes seja uma questão de ponto de vista e não de prática no mundo real. Pessoalmente ainda não consegui achar no nosso país(falo na prática e não no discurso) alguém ateu ou (neo)liberal. Em momentos de crise então…

Mas afinal, para além do debate econômico, muitas vezes distorcido pelo debate político, o que de fato o mundo vem fazendo para superar a crise econômica provocada pelo Coronavírus?

  • 1 – Os Estados Unidos aprovaram um pacote trilionário (US$ 2 trilhões, o maior da história) para combater a crise. Destes US$ 2 trilhões, US$ 500 bilhões são transferência direta para famílias que ganham até US$ 99 mil dólares anuais, US$ 250 bilhões para desempregados e US$ 300 bilhões para pequenas empresas;
  • 2 – O governo alemão anunciou um pacote de 750 bilhões de euros. O foco destes recursos é preservar a saúde financeira das empresasconcedendo crédito, assumindo a inadimplência de empresas junto ao sistema financeiro e até mesmo adquirindo participação acionária de empresas em dificuldades (para os menos constrangidos, estatizando empresas);
  • 3 – O governo argentino aumento em 100 bilhões de pesos o orçamento para obras públicas. Além disto, ajudará às empresas com dificuldade em pagar salários e aumento no orçamento do seguro desemprego

Os exemplos descritos anteriormente demonstram maiores ou menores dosagens do remédio keynesiano tradicional, independente do viés político. Nos momentos de crise, a realidade demonstra que o filme preferido é “50 tons de Keynes”.

No Brasil, o governo anunciou um pacote de medidas para conter a crise no valor de R$ 700 bilhões(ou um valor maior a depender de outras medidas a serem aprovadas para o sistema financeiro). Uma análise mais detalhada destas medidas demonstra que a maior parte deste valor é por via indireta, ou seja, através do efeito multiplicador monetário (explicaremos a seguir) ,ou da antecipação e postergação de recursos e pagamentos já existentes. Em suma, há pouco “dinheiro novo” para combater a crise. As medidas anunciadas até o momento são:

  • a) Antecipação da primeira parcela do 13 salário dos aposentados (R$ 46 bilhões);
  • b) Antecipação do PIS/PASEP (R$ 12,8 bilhões);
  • c) Aumento em R$ 3,1 bilhões do orçamento do Bolsa Família, o que poderá elevar em até 1 milhão o número de beneficiados pelo programa;
  • d) Adiamento em 3 meses do pagamento do FGTS (R$ 30 bilhões) e Simples Nacional(R$ 22 bilhões)
  • e) Redução por 3 meses da contribuição das empresas ao Sistema S (R$ 2,2 bilhões)
  • f) Disponibilização pela Caixa Econômica Federal de R$ 75 bilhões para crédito ao sistema financeiro e as pequenas e médias empresas e;
  • g) Auxílio emergencial de R$ 600 mensais para trabalhadores autônomos, desempregados e microempreendedores de baixa renda (R$ 12,2 bilhões mensais);
  • h) Auxílio aos Estados no valor de R$ 88 bilhões e;
  • i) Aumento da liquidez (disponibilidade de recursos) do sistema financeiro através da redução da alíquota do compulsório de 25% para 17% , dentre outras medidas que possibilitarão o aumento da captação de recursos

Sobre a última medida é importante esclarecer que apesar do sistema financeiro não emitir moeda, ele “cria” moeda através da expansão de empréstimos decorrentes dos depósitos a vista. É o que tecnicamente chamamos de coeficiente de expansão que é dado por uma relação simples de 1/R, onde R é percentual que os bancos tem que manter de seus depósitos a vista no Banco Central. Quanto menor este percentual, maior a capacidade dos bancos em conceder empréstimos e consequentemente aumentar a liquidez (oferta de dinheiro) na economia.

Alguns pontos para reflexão merecem ser feitos em relação não necessariamente ao tamanho do pacote de medidas econômicas, mas a forma como ele está sendo implementado. A primeira reflexão é no âmbito de como o crédito chegará de fato às micro e pequenas empresas, setor tradicionalmente mais frágil a crises econômicas. É consensual a dificuldade que estas empresas possuem em acessar o sistema de crédito tradicional. Se em momentos “normais” essa dificuldade não é desprezível, como se darão empréstimos para empresas em dificuldades de apresentar garantias, principalmente se estas garantias muitas vezes não existem. A lógica do governo é que esta expansão do crédito via sistema bancário atingirá o mundo da produção de bens e serviços. Aguardemos para ver se a burocracia excessiva associado ao custo muitas vezes proibitivo de tomada de crédito será superado neste momento.

Ainda em relação às micro e pequenas empresas, a postergação de pagamento de tributos, se alivia o fluxo de caixa no presente, aumentará o grau de endividamento no futuro, onde uma possível retomada de normalidade da economia ocorrerá. Não seria o caso de oferecer crédito também para o pagamento de tributos e outras despesas importantes para as empresas?

Outro ponto para reflexão é semelhante ao problema de obtenção de crédito para as micro e pequenas empresas. Como o auxílio emergencial de R$ 600,00 (proposto e aprovado pelo congresso) chegará no momento correto, para a massa de trabalhadores autônomos, informais, microempreendedores e desempregados? Além disso, como identificar corretamente esta parcela da população?

E quando a tempestade passar…

Se há uma coisa que os economistas fazem mal, ainda que algumas pessoas paguem caro por isso, são previsões econômicas, principalmente as de médio e longo prazos. É obvio que o desempenho da economia em 2020 será muito pior que o de 2019. A gripezinha ainda vai deixar suas marcas. A grande questão é: por quanto tempo? Pessoalmente acredito que previsões de longo prazo tem algo de astrologia. Signo X terá momentos bons e ruins, etc. Mas e se a previsão (falo do mapa astral) der errada? Ai a culpa é do signo ascendente, a lua, o sol e por ai vai. Ao final, tudo vai entrar na conta do Coronavírus quando errarmos(mais uma vez) as previsões para a economia em 2020.

É importante que nos recordemos que antes da crise do Coronavirus assumir 100% das preocupações vivíamos outros problemas como desempenho ruim do PIB (alguém se lembra do “pibinho”), e queda no preço do barril de petróleo. Aliás, a primeira queda feia do IBOVESPA(de quase 15%) foi no dia 10/03, um dia após o preço do barril de petróleo ter caído para seu menor preço em décadas. O dólar começava também a disparar. Naquele momento o Coronavírus era uma “gripezinha” distante. Mas enfim, já temos problemas demais para nos preocuparmos com o futuro. Mas quando a tempestade passar se faz necessário retornar ao debate das nossas fragilidades. E ai não me refiro somente a economia.

A questão realmente importante no curtíssimo prazo é evitar ao máximo o número de mortes causados pelo vírus. Como não há vacina nem outro tratamento mais eficiente que o isolamento, o custo econômico desta medida é inevitável. E não encontraram outro remédio melhor que o utilizado a quase 90 anos: aumento do gasto público. Nas mais diversas formas. Preferencialmente, que alcance os agentes econômicos mais frágeis. E ai me refiro ao conjunto dos agentes econômicos. Sem pudores e debates desnecessários. Basta olhar para o mundo.

E quando a tempestade passar? Ai, é a hora de melhorar as expectativas, retomar o que Keynes chamava de “animal spirits” (ou estado de ânimo) dos investidores. Keynes novamente? Parece que ele saiu definitivamente da quarentena.

*Presidente do Sergipeprevidencia. Membro do Comitê de Investimentos da Prevnordeste.

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