Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS
Entre 1967 e 1969, eu vivi com minha família em Laranjeiras, deixando Aracaju por três anos. Na cidade dos orixás, estudei no Ginásio no Colégio Professora Possidônia Bragança. Foi outra etapa feliz de minha infância, então quase entrando na adolescência. Deixando o Bairro Siqueira Campos em Aracaju para trás, levei uma vida praticamente rural, sem ser menino de engenho ou menino de fazenda. O motivo da mudança de cidade foi que meu pai operário foi promovido de feitor de turma a mestre de linha da Leste Brasileiro. Naquele o período ele ficou responsável pela manutenção da estrada de ferro no trecho de Socorro a Capela.
Minha família passou a morar no território da Leste, pedaço de terra federal cercado no qual ficavam a estação de trem, tendo a ela anexada a casa do telegrafista e sua família, e uma caixa d´água que dava de beber às locomotivas de trens de passageiros e de carga. Um pouco mais de cem metros de lá ficava a casa da família do mestre de linha – em frente da qual, dividida pelos trilhos da estrada de ferro, o depósito onde eram guardadas as ferramentas de trabalho dos garimpeiros e uma casinha onde morava o encarregado da guarda das pás, picaretas, etc. Ao lado direito do depósito das ferramentas, havia um tanque na qual mulheres lavavam roupas, adultos davam banho em cavalos e meninos e jovens tomavam banho. A cor de sua água era meio esverdeada. O resto do espaço da Leste não tinha mais nada, a não ser dois portões permanentemente abertos para entrada e saída de pessoas e trens. E talvez dormentes empilhados.
Para mim, ainda criança, esse terreno parecia enorme – ao contrário da realidade percebida depois que a gente descobre quando se torna adulto. Do lado de fora do terreno da Leste, em frente à nossa casa, ficava um canavial e, atrás dela lá estava um hospital fechado tendo à sua direita uma frondosa mangueira. Para ir de nossa casa ao centro da cidade, havia duas opções, uma pela Rua da Palha e outra ladeando o mesmo canavial onde estava o Terreiro de Xangô do velho Alexandre. O centro da cidade era um museu aberto cheio de casas, casarões e sobrados dos tempos da riqueza trazida pelas plantações de cana e do seu comércio e a Catedral. Eu me lembro ainda de um cinema, cujos filmes eram rodados no primeiro andar de sobrado na rua principal, do mercado municipal de costas para o Rio Cotinguiba, da escola e da casa paroquial. As ruas do centro eram “pavimentadas” por pedras, construídas nos tempos em que cavalos eram usados e escravos eram meios de transporte. Laranjeira era uma bela cidade!
Para um menino urbano de bairro periférico de Aracaju, ali estava um mundo a ser descoberto e explorado, com a liberdade que eu não tinha em Aracaju. Na parte rural onde a minha família residia, eu e meus irmãos ficamos sabendo que naquele espaço havia guaiamuns. Assim, quase todo o dia, depois do café da manhã, saíamos de casa para verificar se as “ratoeiras” preparadas no dia anterior tinham pego esses “primos dos caranguejos” e, quando tudo corria bem, alegres voltávamos pra casa. Não necessariamente nessa ordem, quase todo o dia, de manhã ou de tarde, jogávamos bola, sol a pino, com outros meninos num pequeno campo de futebol que estava situado na ladeira que levava ao hospital atrás de nossa casa. Muitas vezes, depois da pelada, íamos tomar banho de rio em fazendas de proprietários desconhecidos em que o riacho mencionado ficava mais caudaloso. Nesse mesmo riacho fazíamos pescarias.
Voltávamos para casa coceiras no corpo e com a pele cinzenta de tanto sol. Acontecia também de tomarmos banho na lagoa ou “tanque” de água verde como faziam os meninos nativos. O resultado desses banhos é que todos nós contraímos esquistossomose e outras doenças. Além disso, mas raramente, caminhávamos pela linha de ferro até o Horto da Ibura, onde, entre eucaliptos, nos esperava uma piscina que parecia “olímpica”. Como em frente de nossa havia um canavial, não poucas vezes, íamos com outros meninos “roubar” cana dentro do canavial. A gente ouvia histórias que empregados dos proprietários atiravam pra matar em pessoas que entravam no canavial sem permissão do dono. Verdade ou não, nunca fomos alcançados. Chupávamos as melhores canas, cujos nomes não consigo me lembrar.
Pela tarde e pela noite, eu, meus irmãos e minhas irmãs seguíamos a pé até o centro para frequentar a escola, localizada numa pracinha, onde também estava a biblioteca. Esse ginásio era dirigido por uma freira chamada Irmã Rute, nascida fora de Sergipe. Essa freira, juntamente com mais duas (Irmã Cristina e uma outra) religiosas moravam na Casa Paroquial e o Padre Raul, formavam o grupo de professores religiosos de nossa escola. Tinha um professor de Matemática chamado Zuzarte, auditor fiscal estadual e dono de um internato na sua casa para estudantes de outros municípios, que era o terror de todos nós. Era ele que nos ensinava a não gostar de Matemática, chamando-nos com frequência de tenebrosos e outros adjetivos. Tenho uma profunda gratidão pela freira Irmã Rute, que era professora de Português e me encorajou a estudar, emprestando-me livros. Um dele foi um tijolo escrito por Raissa Maritain, esposa do escritor católico francês Jacques Maritain, cuja leitura não cheguei nem à metade.
Essa mesma freira recrutava seus alunos para ajudá-la na Casa Paroquial e nos serviços da igreja e das missas. Não cheguei a ser coroinha, mas lia tirinhas de papel com frases em certo momento das missas. O padre Raul às vezes nos convidava para ir a sua casa onde tomávamos sucos e ouvíamos música clássica. Nos fins de semana, não era incomum a gente ir, pela noite, ao cinema da cidade. A vida social de meus pais não era movimentada. Lembro que às vezes a gente passava longas tardes em sítios nos quais os almoços e as conversas duravam um tempão.
Como a casa de nossa família estava dentro do terreno da Leste, éramos obrigados a ouvir o barulho e o apito dos trens de passageiros e de cargas praticamente todos os dias. Muitas vezes quando trens descarrilhavam, lembro do telegrafista procurando meu pai no meio da noite para tomar as providências cabíveis. Aí ele, colocando capa semelhante àquela que o personagem Antônio das Mortes usou em filme de Glauber Rocha, reunia feitor e garimpeiros para botar “o cavalo de ferro” nos trilhos. Ele era o chefe e eu tinha muito orgulho disso. Tinha o seu próprio trolley, com uma cadeira, que era empurrado por garimpeiros.
Quando chegavam as férias escolares, eu ia a Salgado para passar algum tempo com meus avós maternos. Aí meu pai me colocava no trem de passageiros e os fiscais do trem sempre vinham checar se tudo estava bem com “o filho de Zeca”. Nessa época eu pegava um romance que ia lendo até chegar em Salgado onde meu avô, ferroviário aposentado me esperava na estação de trem. Fiz isso muitas vezes morando em Laranjeiras e mais tarde quando voltamos a viver em Aracaju. Naquele novo tempo era meu avô materno aposentado quem vinha me buscar em Aracaju para as minhas férias em Salgado. De Aracaju a Salgado, nas estações onde o trem parava, ele comprava pé de “moleque”, peixinho assado em folha de bananeira, cocada, e outras guloseimas.
A cidade de Salgado que frequentei na década de 1960 era um lugar de fazendas de gado. Não sei se existiam plantações de laranjas nessa época. Não era uma cidade especialmente bonita. Do centro da cidade, ligado por uma estrada de barro vermelho, que passava pelos fundos do cemitério, se chegava ao Bairro da Estação. Meus avós tinham uma casa na rua principal em frente da linha de ferro pelas quais corriam trens de passageiros (“O Horário”) e trens de carga. A carga de que mais me lembro era a de mamona, que exalava um cheiro não muito bom. Do outro lado da casa de meus avós, lá ficava um outro depósito para guardar as ferramentas dos ferroviários. A seu lado, tinha um campinho de futebol. Não havia um terreno fechado de propriedade da ferrovia. Era um bairro. A estação ferroviária de Salgado era bem grande e nos horários dos trens de passageiros, um pequeno comércio movimentava a sua plataforma. Em torno da estação tinha nascido esse bairro, que tinha pensões para passageiros em trânsito, posto de gasolina, mercearias, salão de sinuca e bodegas. Também tinha um cinema que, diariamente, depois das seis hora da tarde tocava músicas e onde eu assisti a muitos filmes. Ali morava meus avós. Meu avô aposentado como feitor da Leste e minha avó dona de casa e mulher rendeira com seus bilros e uma tia que logo se casaria com um telegrafista baiano. Com eles vivia um filho adotivo então chamado de Carlinhos e hoje de Carlão. Numa casa bem próxima da residência deles, vivia uma tia costureira com seu marido e uma filha adotiva.
Minhas férias em Salgado eram quase sempre no verão. Me lembro disso por causa do calor e por causa do balneário para onde íamos tomar banho nas suas águas cristalinas cercadas de árvores altas e frondosas. Nos fundos da casa dos meus avós, estava a casa de um fazendeiro que tinha muitas filhas bonitas. No fim da tarde, todos os dias, os vaqueiros levavam a boiada para o curral que ficava ao lado da casa deles. Eu e outros meninos subíamos em cerca de madeira alta do curral curtíamos a entrada dos animais em direção aos seus “aposentos”. Todas as manhãs, meu avô comprava leite na casa do fazendeiro quase que diretamente do peito da vaca.
A fazenda desse senhor estava situada a uns trezentos metros de sua casa, depois de atravessar a linha de ferro. Nela havia um portão alto para entrada e saída dos animais de manhã e de tarde. E uma outra entrada estreita, fazendo um “esse”, para pessoas. Dentro desse espaço onde se espalhava o gado bovino, havia um rio que atravessava toda a fazenda. Ali eu costumava pescar com Carlos e outros meninos da vizinhança e às vezes com primos que, de vez em quando, vinham da cidade baiana de Alagoinhas. Usava meu tempo ainda para ir brincar na estação ou jogar bola no campinho mencionado acima. Todos os sábados, eu e meu avô íamos fazer compras no mercado do centro da cidade – coisa que também fazia com meu pai morando em Laranjeiras. Aos domingos eu era levado, mesmo sem querer (já tinha perdido a fé cristã), à Igreja que ainda está erguida na praça principal da cidade, chegando mesmo a participar de procissões religiosas.
Mas a melhor coisa vivida nessas férias em Salgado eram as festas de Reis e de São João, uma no verão e outra no inverno. Nessas ocasiões, a praça que ficava entre a casa de meus avós, a casa do fazendeiro (que andava sempre no seu cavalo ou num jipe) e a casa de minha tia costureira se transformava, com luzes, bandeirolas, bancas vendendo fogos, comidas, bebidas, e às vezes até com circo. Lembro que certa vez, ao tentar saltar por cima da fogueira de São João, caí nela e a festa acabou pra mim. Hoje em dia, quando volto a Salgado de vez em quando, existem pessoas que se lembram de meu tio adotivo Carlão e raramente de mim. Encontro pessoas de minha geração casadas, envolvidas na política municipal, em outras atividades profissionais ou aposentadas e sou informado daquelas que “partiram”. Bons velhos tempos! Eu me lembro.