Alexandre de Jesus dos Prazeres
Bacharel em Teologia, Mestre em Ciências da Religião e Doutor em Sociologia
Uma das principais características de pessoas fanáticas não é o desconhecimento de ideias ou de visões de mundo diferentes das suas, mas a necessidade de ignorar ou até mesmo silenciar modos de pensar diferentes dos seus. O fanático aderiu a um conjunto de crenças acerca da realidade e se recusa a lidar com qualquer pensamento que contrarie essas crenças. Como alguém que escolheu seguir uma tradição em detrimento de outras ou se recusando a reconhecer a existência de outras tradições, o fanático pode ser descrito como um neotradicionalista. Esta descrição serve para marcar a diferença em relação aos tradicionalistas, que na forma como compreendemos aqui, é uma referência às pessoas que nasceram em sociedades cujas tradições são aceitas conforme dadas, pois desconhecem a existência de outras tradições ou culturas.
A diferença entre o tradicionalista e o neotradicionalista é que o segundo escolheu uma tradição em detrimento de outras e sabe disto, sendo esta a razão de reagir furiosamente contra qualquer um que o lembre disto.
O grande problema que desafia os neotradicionalistas é que o mundo moderno, por uma série de fatores, colocou a humanidade diante de uma experiência cultural plural. Tomamos conhecimento da existência de uma pluralidade de culturas e de modos de experimentar o mundo. Isto nos coloca imersos na experiência do pluralismo e quando se assume a consciência desta pluralidade não há como evitar a relativização das crenças herdadas ou assumidas, o reconhecimento de que o modo como encaramos o mundo é apenas um dentre tantos outros. Nesta situação, há duas formas básicas de reagir a esta relativização das coisas: relativismo ou fundamentalismo. Os que aderem a uma postura relativista assumem a dúvida como elemento norteador, negando qualquer existência de absolutos (nem mesmo como algo que orienta a busca pela verdade ou pelo absoluto, ou que transcenda a existência histórica). Por sua vez, os fundamentalistas se recusam a questionar as ideias que tinham como certas, não lidam bem com dúvidas e, para garantir as certezas, absolutizam as suas concepções acerca do mundo.
A tensão entre formas de interpretar o mundo e os eventos do campo político e social é traduzida por estas pessoas em termos de um conflito cósmico mítico-simbólico. E isto é feito tanto pelos religiosos declarados (católicos, evangélicos, espíritas, etc) quanto pelos que não explicitam pertença religiosa. A linguagem mítico-simbólica é característica da experiência religiosa e quando descreve as motivações de empates no campo político e social como estes que envolvem o bolsonarismo é indicativo de que o movimento se orienta por uma lógica religiosa. É perceptível que estas tensões são interpretadas pelos envolvidos como uma luta do bem contra o mal; os bolsonaristas também possuem uma visão idealizada acerca de si mesmos (são patriotas, pessoas de bem, salvadores do Brasil e etc), encarnam o papel de eleitos representantes do bem para combater o mal; descrevem aquilo ou aqueles a quem se opõem como representantes do mal (os comunistas, feministas, comunidade LGBTQ, militantes de movimentos sociais, “ideologia de gênero”); Bolsonaro assume para eles o papel de figura missiânica idealizada (e por isso incorruptível, qualquer evidência de seu envolvimento com crimes não será crida pelos bolsonaristas); todos os atos dos bolsonaristas são justos e bons mesmo que sejam violentos ou criminosos, pois possuem o monopólico da virtude enquanto representantes do bem; estão envolvidos numa luta escatológica para preservar a ordem social idealizada por eles; qualquer denúncia ou contestação desta ordem social é compreendida como ameaça, deste modo os comunistas, feministas, comunidade LGBTQ, militantes de movimentos sociais ameaçam o mundo que eles desejam preservar.
Estes são alguns marcadores dessa lógica religiosa que guia a militância bolsonarista. É claro que este efeito é percebido por pessoas inescrupulosas que literalmente se beneficiam com esta situação. Estimulam essas crenças através da produção de conteúdos que objetivam exacerbar o nível de tensão ao ponto de fazer com que as pessoas vivam em estado delirante e em uma realidade paralela. Propagam temores infundados, teorias conspiratórias, criam inimigos imaginários ou direcionam a fúria das pessoas contra lideranças políticas, instituições de Estado (STF, Congresso Nacional) ou representantes da República que tenham frustrados os seus interesses. Difundem o pânico moral, espalhando fake news sobre distribuição de kit de gays em escolas, “ideologia de gênero” para transformar as crianças em gays, lésbicas e transsexuais.
Desacreditam todos os canais de informação que poderiam ajudar as pessoas a confrontar com a realidade as crenças que foram ardilosamente construídas, reforçadas e manipuladas.
Para exemplificar, nos interrogatórios dos que foram presos devido as ações de vandalismo contra os edifícios dos três poderes em Brasília em 8 de janeiro, aparecem os principais tópicos utilizados nas falas de Bolsonaro para inflamar seus apoiadores. Em matéria publicado no G1, em 13 de janeiro, os repórteres Fernanda Calgaro, Sávio Ladeira, Poliana Casemiro, Paula Salati, Káthia Mello e Gabriel Croquer fizeram um resumo desses tópicos:
– Achar que houve fraude nas urnas eletrônicas e não aceitar o resultado das eleições em que Bolsonaro perdeu para Luiz Inácio Lula da Silva.
– Pedir uma intervenção das Forças Armadas no país.
– Afirmar que tiveram sua liberdade de expressão cerceada, sem reconhecer que tal liberdade não acoberta o cometimento de crimes, e possui limites.
– Evitar a instalação do comunismo no Brasil.
– Não concordar com a “ideologia de gênero”, termo criado por conservadores contrários aos estudos de gênero.
Há grupos de pessoas que são mais suscetíveis a isto devido à formação cultural e religiosa na qual já estavam imersos. A ordem social que estas pessoas desejam proteger se relaciona com fatores que são estruturais (racismo, homofobismo, sexismo, classismo). Um caso emblemático, neste sentido, é o dos evangélicos. Quando posicionamentos políticos ideológicos são pensados através do horizonte do campo religioso, o bolsonarismo brasileiro e o trumpismoestadunidense foram assumidos pelos evangélicos conservadores com maior entusiasmo do que por outros grupos religiosos nos contextos de ambos os países. Isto não ocorre aleatoriamente, as principais denominações evangélicas brasileiras são fruto da expansão missionário de igrejas oriundas dos Estados Unidos. A influência de movimentos advindos deste país sobre as igrejas evangélicas do Brasil pode ser sentida desde os seus primórdios. Na base da formação destas igrejas estão o fundamentalismo e o evangelicalismo do protestantismo estadunidense, que moldaram o pensamento e visão de mundo nessas igrejas.
É comum que grupos religiosos demarquem separações entre seus adeptos e certas práticas e conteúdos da cultura das sociedades nas quais estão inseridos. No caso dos evangélicos, isto foi costumeiramente demarcado através de um dualismo entre as coisas de Deus e as do mundo, orientandos os crentes a se afastarem das coisas do mundo. O entendimento acerca de quais coisas foram consideradas do mundo ou pecaminosas pelos crentes sempre dependeu de diversas variáveis. Dentre estas, o momento histórico, o nível de tensão em relação àcultura por parte de cada denominação evangélica em particular (os evangélicos não são um grupo homogêneo, há pentecostais, protestantes históricos de missão ou de imigração; uma maioria conservadora, mas há também progressistas). Como coisas do mundo, considerando as variáveis, poderiam ser enquadradas participar de certas atividades sociais como se confraternizar com amigos não crentes, dançar, ouvir canções não religiosas (“música do mundo”), consumir bebidas alcoólicas e fumar, até mesmo ir ao teatro ou cinema, tomar parte em eventos ou festejos da cultura popular de certos locais, e etc. É certo que até o final dos anos 80 no Brasil, os evangélicos consideravam o envolvimento com política partidária coisa do mundo. Mas as coisas mudaram de lá para cá, principalmente em reação a luta por direitos civis de alguns segmentos da sociedade que foram identificados com a esquerda, bem como por rejeição as chamadas pautas de costumes ou luta por transformações culturais. É quando o lema “irmão vota em irmão” é cunhado e lideranças evangélicas assumem um protagonismo na política eleitoral e partidária.
O anticomunismo entre os evangélicos também foi explorado politicamente em algumas ocasiões. Por exemplo, às vésperas do Golpe Militar no Brasil, no clima da Guerra Fria, estabeleceu-se nas igrejas evangélicas da época um clima anticomunista. Neste período, a referência às ideias marxistas em igrejas evangélicas era realizada com o intuito de denunciá-las como ameaça. Nos sermões de pastores nas igrejas e em seus materiais impressos tais como os jornais institucionais, os argumentos frequentes eram:
– as ideias marxistas deveriam ser rejeitadas por serem ateias e materialistas;
– também havia menções contrárias aos países que adotaram o socialismo e manifestação de apoio aos Estados Unidos. Os discursos se esforçavam por demonstrar que o comunismo internacional e o seu principal representante a União Soviética eram destruidores de nações, de famílias, e principalmente das igrejas, em oposição aos Estados Unidos que eram apresentados como um país referencial para os protestantes brasileiros;
– também havia incitação contra as pessoas dentro das igrejas (pastores e membros) que fossem rotulados como comunistas. Líderes protestantes que tivessem posicionamentos sociais identificados ou rotulados como comunistas eram acusados de serem “falsos profetas” e, no auge da Ditadura Militar,denunciados as autoridades como subversivos;
– nos sermões de um importante pregador batista estadunidense que eram amplamente difundidos no Brasil (Billy Graham), havia referência às ideias de Karl Marx com a menção de que estas só morreriam quando os crentes se unissem em oração para derrotá-las, pois não se tratava de simples luta política, mas de uma batalha entre o bem e o mal.
Os evangélicos brasileiros possuem uma formação historicamente conservadora. Talvez nisto esteja um fator importante para se compreender as suas afinidades com relação pautas políticas de direita. Em algumas ocasiões se difundiu o entendimento equivocado de que os evangélicos eram apáticos a questões políticas por razões religiosas. Porém já observamos que com referência ao anticomunismo em ocasiões nas quais o segmento se sentiu ameaçado, este tipo de pânico se constituiu em elemento de mobilização política por parte das lideranças de diversas igrejas. Isto nos anos que antecederam ao Golpe Civil Militar, mas também testemunhamos resquícios deste anticomunismo nas eleições de 1989 entre Lula e Fernando Collor. Neste momento, houve rechaço em relação à esquerda e receio das lideranças evangélicas em relação a dois possíveis cenários: a implantação de um “comunismo ateu” numa eventual vitória de Lula, ou a retomada da preeminência da Igreja Católica, sobretudo dos setores ligados ao Partido dos Trabalhadores.
Nos anos 90, os cientistas sociais, Flávio Pierucci eReginaldo Prandi, deixando de lado a perspectiva das lideranças evangélicas, focalizaram as suas análises no comportamento eleitoral dos fiéis evangélicos através de um survey. Assim como em outras pesquisas, eles acentuaram os traços anti-esquerdistas de segmentos do campo evangélico ao detalhar que, pelo menos no que se refere à eleição presidencial de 1994, os pentecostais foram o grupo religioso que mais rejeitou a candidatura de Lula.
Em resumo, ao se lidar com um modo fanático de se comportar, argumentos e até mesmos fatos não são suficientes. Pois nesse processo estão envolvidas uma adesão deliberada a certas crenças e uma negação ao que for contrário a elas misturadas a paixões de uma ordem religiosa, uma recusa em enxergar o que para outras pessoas é óbvio.