Eduardo Campos – Observatório da Evangelização PUC Minas
Jesus ordenou a seus discípulos que distribuíssem o pão multiplicado à multidão necessitada, de modo que “todos comeram e ficaram saciados” (cf Mc 6,34-44). Curou os enfermos, passou a vida fazendo o bem (At 10,38 . No final dos tempos, nos julgará no amor (cf. Ml 25).
INTRUDUÇÃO
Em quatro de dezembro de mil novecentos e quarenta e dois, no auge da Segunda Guerra Mundial, nascia na pequena cidade de Cachoeirinha, Pernambuco, Enoque Salvador de Melo. Como em sua cidade natal não havia cartório, Enoque foi registrado na cidade vizinha de Belo Jardim. Filho mais velho dos agricultores, João Salvador da Silva e Sebastiana Maria de Melo, Enoque, por motivos desconhecidos, foi criado por sua tia materna, dona Maria José de Melo. Solteira, dona Maria José viveu com o filho no bairro Mocambo, região carente de Recife.
NA PERIFERIA DA SOCIEDADE
Foi exatamente na periferia da sociedade e em meio à pobreza que Deus foi buscar aquela criança para ser seu andarilho. A pequena casa de madeira, onde Enoque viveu seus primeiros anos, logo foi substituída por uma casa um pouco mais moderna. Após alguns anos mudaram-se para a Rua Frei Casemiro, no bairro Santo Amaro, próxima a igreja de São Sebastião. Foi ali que ele passou a maior parte de sua adolescência e juventude.
Quanto à sua educação, o depoente revela que, após completar o primeiro grau, sua mãe, mesmo com todos os problemas financeiros, se esforçava para mantê-lo em um dos colégios de elite de Recife, o Colégio Diocesano de Garanhuns, instituição pertencente à Igreja Católica. Nele, haviam dois cursos, o científico e o clássico. O clássico para quem ia fazer advocacia ou ser professor e o científico para quem ia fazer Medicina ou Química. Frei Enoque (2021) revela que: “O sonho de minha mãe era que eu fizesse medicina, eu nunca tive vontade, e meu sonho era fazer Direito”.
Aos 17 anos, em 1963, Enoque era um jovem comum como outro qualquer. Torcedor assíduo do Esporte gostava de jogar futebol no time do bairro, brincava carnaval, namorava e trabalhava para ajudar a mãe nas despesas da casa e já estava com seu futuro planejado: iria prestar vestibular para Direito. Até que, em 1966, nas famosas e tradicionais Páscoas que eram comemoradas por diversos segmentos da sociedade, ocorre um evento que vai mudar o rumo de sua vida. Entre as páscoas, destacava-se a Páscoa dos militares e a Páscoa dos bancários.
Nessa ocasião, Enoque já contava com seus 20 anos, era noivo de uma moça chamada Lourdinha, que era da cidade de Cachoeirinha, e trabalhava como bancário no Banco Pernambucano, quando ele, como funcionário do banco, resolve participar da comemoração junto com seus colegas de trabalho. Foi nesse momento que Enoque teve contato com frei Angelino Caio Feitosa. Segundo relato do depoente; “Ele falou tão bem sobre são Francisco, empolgou-se tanto que ficou aquela semente.” A partir desse momento, Enoque resolve deixar tudo que havia conquistado e seguir outro objetivo na vida.
UMA EXPERIÊNCIA DECISIVA
Em janeiro de 1967, aos 21 anos, Enoque entra no convento dos Franciscanos Menor da região de Siriahein, em Recife. Com a idade relativamente tardia para seguir a vocação sacerdotal, o jovem recebeu seu primeiro hábito, tornando-se noviço franciscano no mês de fevereiro daquele mesmo ano. De imediato, o noviço teve que se adaptar a rotina e normas do convento; as atividades do dia a dia do convento eram divididas entre os estudos teológicos e as obrigações religiosas. No convento dos frades de Recife, havia noviços das regiões de Pernambuco, Pará e Ceará. A turma de Enoque era composta por 16 noviços e todos já tinham o segundo grau completo. Cada noviço tinha sua cela simples (quarto), composta de uma cama e um armário. Não eram permitidos aparelhos eletrônicos como rádio ou televisão. A turma ainda era acompanhada por um frade superior da casa, conhecido como guardião ou mestre, que era o responsável pela formação da turma. O dia no convento começava muito cedo.
Ao levantar, os noviços se retiravam para fazer o dejejum servido em uma sala grande com mesa coletiva. O café era compartilhado por todos que “na mesa grande se sentavam e ficavam de costas para a parede. Primeiro havia a leitura do Evangelho do dia, a regra de são Francisco, toda a vida franciscana”. Em geral a alimentação dos noviços e frades era simples. Somente em dias de festas, havia uma refeição mais elaborada; “tinha fruta, tinha refrigerante, vinho, né”. Após as refeições os noviços eram direcionados às suas atividades clericais, que além das orações diárias também incluía estudos sobre “os escritos franciscanos, cartas, tudo isso que tinha a vida dos santos, Santo Antônio, pois este era um ano em que a gente se espelhava e ia à fonte da vida da espiritualidade franciscana” (ENOQUE, 2021).
UMA TEOLOGIA APARTI DOS POBRES
Os estudos sobre Filosofia, Teologia e ciências afins, eram realizados fora do convento, após a realização dos votos que inclui, pobreza, castidade e obediência. Os cursos fora dos muros do mosteiro eram um dos poucos momentos que os jovens estudantes tinham contato com o mundo externo, onde os noviços entravam em contato com estudantes de outras ordens da igreja, professores e universitários, já que o Instituto de Teologia de Recife (INTER), local onde estudavam, funcionava na Faculdade de Filosofia de Recife (FAFI).
Durante todos os dias da semana, à tarde, em 1969, uma Kombi pegava os noviços os quais, nesse período, estavam no mosteiro que ficava na subida da Sé em Olinda, e os levava para Instituto de Teologia em Recife, fundado por Dom Helder Câmara, Arcebispo de Olinda/Recife.
Nessa época, o instituto contava com padres e professores renomados no seu quadro de colaboradores, como o sociólogo Humberto Plumén e o famoso teólogo José Comblin, que segundo o noviço era “um dos maiores teólogos da America Latina que defendia a Teologia da Libertação”. Em 1970, os estudantes tinham cursos excelentes e os professores eram os melhores que se podia ter naquele período, mas para a turma de alunos que viviam um dos períodos de transformação da Igreja Católica e uma das fases mais marcantes da história brasileira, isso não era suficiente.
Segundo Enoque,
“Recife, foi um centro de efervescência muito grande. Foi lá que apareceu morto, torturado o colaborador de dom Helder, o padre Antônio Enrique. Nós estávamos lá e a gente presenciava muita coisa, muita confusão. Nós tivemos um padre que foi preso, frei Bomfim, junto com frei Juvenal, porque ele se recusou a celebrar no dia 7 de Setembro porque é… a pedido dos militares, ele tinha que celebrar a Independência do Brasil e dizer que o Brasil estava livre do comunismo. Ai ele se recusou, porque se recusasse ele seria preso e torturado, depois ele ficou psicologicamente abalado.” (ENOQUE, 2021)
OS SANTOS SABEM LER OS SINAIS DOS TEMPOS
O projeto evangélico de Enoque começa a ganhar força após a Conferência Episcopal de Medellín (1968), a ponto de fazerem uma experiência missionária na diocese de Propriá, motivo este que levou seus colegas a chamarem ele de louco. O fato é que Enoque, ao lado de Roberto, não eram alienados que viviam olhando para o céu e se esquecendo do que acontecia diante de seus próprios olhos. No início de 1970, quando era estudante, Enoque e frei Roberto, seguem para a diocese de Propriá, localizada no alto sertão sergipano. Esta era administrada pelo então dom José Brandão de Castro.
A mudança fazia parte das experiências da Teologia da Enxada. Na ocasião, já estavam na diocese de Propriá frei Angelino Caio Feitosa, mestre dos noviços no convento de Olinda Recife, e o sergipano frei Juvenal Vieira Bomfim. Quando chegaram à região sergipana, os seminaristas da ordem dos franciscanos menor se deparam com uma diocese, onde a pobreza e a exploração da mão de obra dominavam o cenário social das comunidades ribeirinhas. Embora tivessem a presença marcante de padres Belgas e bispos comprometidos, a população carente era explorada pelos grandes latifundiários.
NÃO É NADA FÁCIL SER FIEL À PRÓPRIA CONSCIÊNCIA
Foi às margens do Rio São Francisco que o jovem frade Enoque começou a perceber que, mesmo que o seu coração estivesse voltado para os pobres, ele, geograficamente, vivia no centro da cidade. E, a partir do momento em que sua consciência falou alto, não havia nada mais digno a fazer do que deixar o centro e caminhar para o mundo dos pobres. Em 1971, quando os trabalhos da Igreja, estavam começando Enoque recebe, em Tacaimbó, o Diaconado, ou seja, o primeiro passo para a ordenação, que ocorre em 05 de dezembro do mesmo ano, na igreja de Porto da Folha.
A cerimônia de Ordenação, presidida por dom José Brandão de Castro, fugiu às normas ditadas pela Igreja Católica que prevê a ordenação de um padre em uma diocese ou em sua terra natal. Nesse caso, dois dias depois da ordenação, no dia 07 de dezembro, Enoque realiza os últimos votos, seguindo assim a ordem franciscana “de pobreza, castidade e obediência.”
HUMANIZA-SE COM O PASSAR DO TEMPO
Hoje, aos 50 anos de sacerdócio, frei Enoque nos ensina que o sujeito da nova evangelização é toda a comunidade eclesial, segundo sua própria natureza: os bispos, em comunhão com o Papa, nossos presbíteros e diáconos, os religiosos e religiosas, e todos os homens e mulheres que constituímos o Povo de Deus. Suas santas missões as margens dos quilombos e sem terras no estado de Sergipe, nos mostram que a religiosidade popular é uma expressão privilegiada da inculturação da fé. Não se trata só de expressões religiosas, mas também de valores, critérios, condutas e atitudes que nascem do dogma católico e constitui a sabedoria de nosso povo, formando-lhe a matriz cultural. O anúncio da Boa Nova exige uma renovada espiritualidade que, iluminada pela fé que se proclama, anima, com a sabedoria de Deus, a autêntica promoção humana, sendo o fermento de uma cultura cristã.
A FÉ É UMA EXPRESSÃO PÚBLICA
A percepção de frei Enoque é algo espetacular. Ele vê algo que não era comum, ou seja, que a fé deve ser pública. Não podemos fazer com que a fé seja refém das paredes da Igreja. A fé é uma expressão pública e deve, portanto, nos levar ao encontro dos outros, principalmente dos mais pobres. Para frei Enoque, a forma privilegiada de encontrar a Deus é quando nos encontramos com os pobres. Deus se encontra na realidade, e é a partir da realidade que marcamos um encontro com Deus. Por fim Frei Enoque (2021) deixa claro:
“Meus companheiros e companheiras de caminhada com alegria testemunhamos que em Jesus Cristo, temos a libertação integral para cada um de nós e para nossos povos; libertação do pecado, da morte e da escravidão feita de perdão e reconciliação”.
Jesus Cristo nos convoca em sua Igreja, que é sacramento de comunhão evangelizadora. Nela devemos viver a unidade de nossas Igrejas na caridade, comunicando e anunciando essa comunhão a todo o mundo, através da Palavra, com a Eucaristia e com os demais sacramentos. A Igreja vive para evangelizar. Sua vida e vocação se realizam quando se faz testemunho, quando provoca a conversão e conduz os homens e as mulheres à salvação (cf. EN 15).
REFERÊNCIAS:
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Experiência de Deus e pluralismo religioso no moderno em crise. São Paulo: Loyola, 1993.
HOONAERT, Eduardo. Teologia que vem das catacumbas: desafios atuais. São Paulo: Loyola, 2003.
PAULO VI, Papa.Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. São Paulo: Paulinas, 1975.
UM FATO TRISTE. Jornal A defesa de Propriá, p.07, junho de 1984.
FONTES ORAIS:
Entrevista com Frei Enoque Salvador de Melo concedida a Eduardo Gomes em 14 de abril de 2021.
Sobre o autor:
Eduardo Gomes – Possui graduação em Filosofia, pelo Seminario Maior Nossa Senhora da Conceição de Aracaju (2018), e é graduando em Teologia por essa mesma instituição (SMNSC). Atualmente dedica-se na construção de artigos de caráter hagiográficos, teológicos da história de fé das CEBs, pastorais sociais, movimentos populares.