Afonso Nascimento – Professor de Direito da UFS
O consagrado historiador brasileiro Ibarê Dantas lançou, recentemente, a segunda edição do seu livro sobre o coronelismo brasileiro. Antes de avançar na análise, preciso abrir um parêntesis. Para os leitores não familiarizados com esse tipo de literatura, quero dizer que o coronelismo é um tipo de representação política em que o chefe político local (o coronel, no sentido político) presta serviços assistencialistas de toda sorte em troca de lealdade eleitoral da parte de sua clientela. Enquanto representante dessa ou daquela população assistida, no jogo político-eleitoral, ele garante a entrega de votos seguros para oligarquias ou grupos com os quais esteja alinhado. Ele tem seu “curral eleitoral” composto de “votos de cabresto”. O livro clássico a esse respeito foi escrito por Victor Nunes Leal, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal. Volto ao livro de Ibarê Dantas.
Pois bem, essa segunda edição desse grande livro na versão de 2020 (DANTAS, Ibarê. Coronelismo e dominação. 2a edição revista e ampliada. Aracaju: Editora Criação, 2019), segundo o autor, foi revista e ampliada. Não discutirei se o livro anterior foi revisto, posto que ele sustenta a mesma tese avançada na primeira versão de 1987 que é adiante discutida. Mas o livro foi seguramente ampliado. E para melhor! Isso pode ser percebido em termos do número de páginas, em termos de fotografias e em termos de fontes. Quanto a estas, merece destaque o uso de um diário do professor e juiz de Direito José Bezerra dos Santos, sediado em Itabaiana, que registra, sobretudo, a sua relação com o mais importante dos coronéis dessa cidade Agreste que foi Euclides Paes Mendonça, desde sua aliança até o seu rompimento no começo da década de 60 do século passado.
Qual é o objetivo do incontornável historiador da política sergipana? A intenção de Ibarê Dantas é ressignificar a noção de coronelismo. Ele quer alargar a base empírica do sentido de coronelismo e o faz com sucesso. De acordo com ele, os autores que se debruçaram sobre o coronelismo brasileiro (Victor Nunes Leal, Maria Isaura Pereira de Queiroz, José de Souza Martins, Maria de Lourdes Janotti, Antônio Cintra, Décio Saez e Raimundo Faoro) se preocuparam em mostrar o fenômeno político enquanto voto. Para provar isso, ele fez a revisão de toda a literatura a esse respeito, só esquecendo, a meu ver, do trabalho mais recente do também historiador José Murilo de Carvalho. Essa “lacuna” não prejudica em nada a exposição e a demonstração de sua tese muito bem construída e sustentada nas duas partes em que é organizado o livro – a qual, segundo ele, recebeu boa acolhida nos meios acadêmicos.
Para ressignificar e renovar a noção de coronelismo, entendido como dominação coercitiva (existe dominação consensual), Ibarê Dantas consultou uma outra bibliografia (Antônio Cintra, Edgar Carone, Carlos Alberto Dória e Amaury Souza) que enfatiza a dimensão da coerção, da intimidação e do emprego da violência armada por parte de agentes políticos privados e públicos, que são os próprios coronéis ou suas milícias privadas, policiais militares ou pistoleiros de aluguel. Analisando a política itabaianense de 1941 a 2007, Ibarê Dantas encontra a violência armada sendo usada nas carreiras políticas de Manoel Teles, de Euclides Paes Mendonça e de Chico de Miguel, observando o declínio e colapso desses costumes políticos de bangue-bangue que perderão a sua natureza coercitiva porém que guardarão o seu aspecto de clientelismo, isso ocorrendo a partir do regime militar.
Comparando essas três elites políticas, elas possuem traços comuns além do uso da violência. Os três políticos eram políticos eram comerciantes com origens rurais, ocuparam mandatos eletivos (prefeitos, deputados estaduais e deputado federal), elegeram políticos, influenciaram na política de Itabaiana mesmo quando fora do poder. O primeiro coronel pertencia ao PSD e os outros dois à UDN e, no caso de Chico de Miguel, este também pertenceu ao partido dos militares, ou seja, à Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Pelo que está exposto no livro, o menos violento dos três coronéis foi Manoel Teles. Mas, segundo o governador udenista Leandro Maciel, respondendo às denúncias de Manoel Teles contra Euclides Paes Mendonça, as suas práticas políticas não eram assim diferentes no tempo em que esteve no comando da política de faroeste de Itabaiana. Os dois primeiros foram assassinados, enquanto o terceiro foi vítima de infarto.
No coronelismo violento de Itabaiana, as principais autoridades sociais, judiciais, religiosas e policiais quase sempre estavam sob a influência dos coronéis. Quando assim não acontecia, os coronéis pediam a sua transferência para outras freguesias ou então faziam gestos de intimidação, de ameaças e não faltavam os tiroteios e as mortes por causa de motivos mais simples, torpes e covardes. Os habitantes da cidade e de seus povoados viviam sob tensão permanente e não tinham o direito de ficar em cima do muro. Eram obrigados a tomar partido, sendo que o seu posicionamento podia agradar um lado e desagradar o outro. É possível que a prática até hoje presente na cidade de resolver conflitos individuais na base da bala tenha a ver com essa tradição de violência política herdada dos tempos dos três mandões de Itabaiana.
Para pôr em relevo esses costumes políticos violentos ou coercitivos, faço questão de mencionar aqueles que considerei mais importantes – além dos que já foram rapidamente acima apontados. Aqui estão: espancamentos, prisão e soltura arbitrárias, violência sexual contra mulheres, importação de matadores de aluguel, sonegação de impostos, práticas de contrabando de mercadorias, forçar pessoas a mudarem de domicílio familiar, fraudes eleitorais, muitos homicídios políticos e outros sem motivação política, usos de milícias privadas ou de forças públicas, alistamento de eleitores “laçados” e acompanhados por cabos eleitorais, proteção de seguidores em caso de ameaças de outro grupo, etc. Em relação aos costumes assistencialistas, ele são e continuam sendo os mesmos (transportes de doentes, pequenos favores, etc.).
Conforme explica Ibarê Dantas, enquanto elites políticas, esses três coronéis cumpriam a função de “intermediários” entre as massas rurais e o Estado, algo que requer uma pequena digressão. A existência do coronelismo indica o longo período na formação do Estado em Sergipe, em que ainda não tinha havido a monopolização dos recursos da violência privada pelo Estado. O coronelismo vicejou enquanto não ocorreu a transferência desses meios coerção para a instituição estatal. O regime militar ajudou a pôr um termo nessa história do banditismo político em Sergipe. Além dessa ação da ditadura, outros fatores contribuíram para o ocaso do coronelismo como a urbanização, a expansão de relações mercantis no campo, a maior autonomia das autoridades judiciais e policiais, etc. Uma miríade de causas portanto.
Hoje em dia não se fala mais em coronelismo em Sergipe. A última referência a essa prática política foi lida na imprensa por ocasião da morte de Francisco Passos, 2013, com sua longa dominação em Ribeirópolis e que, naquela ocasião, foi chamado de “o último coronel” sergipano. Para além disso, em nível nacional, certos autores passaram a falar em “coronelismo eletrônico” para designar o controle de vários meios de comunicação por chefes políticos em estados nordestinos. Não acredito que seja apropriada essa rotulação. Mas isso seria objeto para outra discussão.