por Roseneide Santana (professpra de Literatura) –
à Beatriz Nascimento e Hamilton Cardoso
Quando procuramos nos dicionários o conceito de “Quilombo”, vamos nos deparar, quase que unicamente, com a significação “lugar de negros/escravos fugitivos”. Do ponto de vista da historiadora e pesquisadora negra sergipana Beatriz Nascimento (1942-1995) , a fuga está na origem do quilombo, mas não de escravos fugidos: “O quilombo surge do fato histórico que é a fuga. É o ato primeiro de um homem que não reconhece que é propriedade de outro.” (Doc. Ori, 1989, direção de Raquel Gerber). Dessa forma, o conceito é atravessado pela necessidade humana de liberdade. Assim, a historiadora completa: “Todos somos quilombo”. O que dizem os dicionários sobre o termo “racismo”? Como se comprova o racismo? Como se pode reconhecer um racista? Recentemente, o assassinato pela polícia, de um homem negro americano George Floyd, foi considerado ato racista. Aqui no Brasil, são muitas as histórias antigas e recentes: o dentista Flávio Ferreira, o pedreiro Amarildo, o músico Evaldo Rosa (80 tiros), a garota Ághata, o jovem Pedro; todos foram considerados, pela sociedade, como vítimas do racismo institucional. Se é possível se repensar o conceito que sempre ouvimos na escola sobre “Quilombo”, será possível se redimensionar o conceito de racismo a partir da visão de suas vítimas? Há quem ensine o racismo? O linguista neerlandês Van Dijk, renomado pesquisador do tema, diz: “As pessoas aprendem a ser racistas com seus pais, seus pares, na escola, com a comunicação de massa, do mesmo modo que com a observação diária” (apud, A. G.C. Neto, Caderno de Letras, nº 25, Jul-Dez – 2015 – ISSN 0102-9576).
Como professora de Literatura Infanto-Juvenil (2001-2003, 2018-2019, na UFS), acompanho há 10 anos a discussão sobre racismo na literatura infantil, que ganhou corpo entre 2010/11 a partir da observação do pesquisador Antônio Gomes da Costa Neto que questionou o CNE, especificamente, sobre a indicação de um livro para o ensino fundamental menor: “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato. Essa observação se dava por um suposto conteúdo racista, já que o livro trazia notas contextualizando a caçada de onças em um período que não havia proibição, mas nada dizia sobre algumas referências racistas dirigidas à Nastácia, personagem negra da história. A conselheira Nilma Lino Gomes acatou a análise e deu um parecer favorável à retirada do livro do Programa do MEC, mas diante de toda a celeuma criada em torno do parecer, principalmente pelos renomados pesquisadores do escritor, que trataram do caso como uma censura, o CNE teve que emitir novo parecer, mantendo o livro no PNBE. Ressaltou, entretanto: “É responsabilidade dos sistemas de ensino e das escolas identificar a incidência de estereótipos e preconceitos garantindo, aos estudantes e a comunidade, uma leitura crítica destes de modo a se contrapor ao impacto do racismo na educação escolar”.
A situação permanece indefinida na justiça, mas a discussão foi importante para a profusão de pesquisas sobre o tema e um novo debruçar-se sobre a obra escrita, uma vez que a grande paixão pelo “Sítio do Picapau Amarelo” , que reúne a maior parte da obra, advém da sua versão televisiva que, naturalmente, não apresentou os textos preconceituosos dos livros. As justificativas dadas pelos chamados lobatianos ou lobatólogos e simpatizantes são sempre as mesmas: “contexto de época”; “irreverência da Boneca Emília”, ou uma contundente “desqualificação dos críticos” do autor: “Quando se recusa de forma expressa reconhecer que obras literárias produzidas em tempos pretéritos reproduzem o racismo e a ideologia racialista, verifica-se o distanciamento da desconstrução do racismo, situação que pode e deve ser corrigida.” ( Antonio G. da C. Neto. Caderno de Letras, nº 25, Jul-Dez – 2015 – ISSN 0102-9576).
Uma professora da Paraíba chamou de “sanha de censores”, que nem devem ter lido a obra; um professor da Unicamp atribuiu, na Folha de São Paulo, à não leitura ou ao não entendimento da leitura e acrescentou, como argumento, a irreverência da Emília, acusada de toda a falta de educação com a Tia Nastácia, pois era uma boneca a frente do seu tempo. O mesmo professor apresentou ainda um detalhe importante: o dia em que visitou o professor e filósofo Benedito Nunes e este mostrou com orgulho a sua coleção do “Sitio”. A mais importante pesquisadora do escritor, considerada a lobatóloga-mor, a professora dra. Marisa Lajolo, bem antes da discussão de 2010, já se posicionava em artigos, contra a visão de um Lobato racista. Em 1998, apresentou um texto escrito 10 anos antes, por ocasião do centenário da “Abolição” e falou sobre Tia Nastácia: “(…)ela desfruta da afetividade da matriarcal família branca para a qual trabalha e , ao mesmo tempo , apesar de suas breves mas muito significativas incursões pela sala e varanda, encontra no espaço da cozinha emblema de seu confinamento e de sua desqualificação social . Ao longo da obra infantil lobatiana, a exceção ao carinho brincalhão que a cerca vem sempre pela boca da Emília que em momentos de discussão e desentendimento desrespeita a velha cozinheira, como sucede em algumas passagens de Histórias de Tia Nastácia:(…)” (LAJOLO, Marisa. A figura do negro em Lobato, 1998).
Para dirimir as dúvidas ou possíveis justificativas de um racismo concentrado em uma boneca de pano, eu como pesquisadora da obra completa informo com pesar: José Bento Monteiro Lobato era um racista, como diria minha mãe, de marca maior! Incontornável. E demonstrou isso ao longo de toda a sua obra e em todos os personagens. Posteriormente, tudo ficou confirmado em mais de 3 décadas de troca de cartas com amigos eugenistas. Como estratégia de confirmação, somente aos que quiserem conferir nos livros, eu não usarei aqui nenhum exemplo que inclua as falas, ditas racistas, de Emília, contraditoriamente, tida como alguém a frente do seu tempo. Começo, no entanto, com uma bronca dada pela Dona Benta à bonequinha malvada, no livro Peter Pan: “Pare com isso, Emília! Não desrespeite a Tia Nastácia. Todos sabem que ela é preta só por fora.”. Em um dos mais conhecidos livros de Lobato Reinações de Narizinho, que está até nos anseios de uma Felicidade Clandestina (1971), da Clarice Lispector, o episódio “O Circo”, traz assim a apresentação da Tia Nastácia, feita por Narizinho, ao respeitável público: “Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então, o encanto se quebrará e ela virará uma linda princesa loura”. No livro que motivou odebate em 2010: Caçadas de Pedrinho, a expressão mais racista vem do narrador sobre Tia Nástacia: “…esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida…”
Como se pode observar, não há essa concentração de um racismo diretamente ligado à irreverência de uma Boneca. Não se trata de uma “exceção”, como escreveu a pesquisadora. De qualquer modo, eu trouxe, penso que em primeira mão, o conteúdo comprovadamente mais preconceituoso da obra lobatiana, inclusive porque o livro foi considerado um dos seus “didáticos”, assim como o História do Mundo para Crianças. Ou seja, próprios para a escola. Trata-se de Geografia de Dona Benta, com assuntos diversos sobre o planeta e seus continentes e as explicações da velha e sábia senhora. Lá no capítulo III: A Terra é redondinha, um alívio! Lobato não era terraplanista. Para resumir, vou me deter no capítulo XXIV: Mar Vermelho e África, no qual Dona Benta vai apresentar conceitos de continente africano, conquista, colonização e escravização: África – “Este infeliz continente é habitado ao norte por povos das raça hamítica e semítica, de pele escura e cabelos lisos; no centro e ao sul, pelos negros, gente de pele preta como carvão e cabelo de pixaim.”(p. 211).
Colonização das américas – “Os índios americanos tinham horror à escravidão. Preferiam a morte. (…) Um padre, Las Casas, concebeu a grande ideia – trazer negros africanos para substituir os índios eternamente rebeldes. Esse Las Casas tinha boas intenções. Queria libertar os índios da escravatura, e como os africanos fossem mais dóceis e já estivessem treinados na escravidão lá entre si, pareceu-lhe que seria um mal menor.” (p. 213)
Quando a Inglaterra proibiu o tráfico de escravos – “E sabe o que os navios negreiros camuflados faziam ao perceberem ao longe um navio inglês? Escancaravam um alçapão para que toda a carga de “marfim preto” fosse tragada pelo oceano! De modo que quando o navio inglês vinha dar a busca, nem a catinga dos negros aparecia…” (p.215)
Sobre a colonização das terras africanas – “- E os africanos com o que ficaram? Perguntou Narizinho. – Com a mosca tse-tsé – respondeu Emília. Dona Benta achou graça. – Sim, ficaram com essa mosca e a honra de serem explorados pelos povos de mais alta civilização do mundo ocidental. Devem estar satisfeitíssimos.” (p. 216)
Este texto é somente um fragmento de artigo que já preparo desde fevereiro de 2019. Apesar de tudo que foi mostrado aqui, o interesse maior não é supervalorizar um racista, mas compreender, nesta quadra em que enfrentamos uma pandemia e, nem assim, o pretocídio deu uma aliviada, que as estátuas e heróis devem continuar sendo questionados ou, até, derrubados para que determinados “vírus” não se estabeleçam. Voltando à Beatriz Nascimento, tão estudiosa das temáticas negras, quanto ainda pouco estudada e reconhecida: “A memória são conteúdos de um
Continente: da sua vida, da sua história, do seu passado…Como se o corpo fosse o
Documento! Não é à toa que a dança para o negro é um fundamento de libertação. O homem negro não pode ser liberto, enquanto ele não esquecer o cativeiro. Não
esquecer, no gesto, que ele não é mais um cativo!” (Ori, 1989). Cabe, então, a todes
nós a derrubada de cânones, bem como a crítica consistente de tudo o que não
representem essa libertação.