Monteiro Lobato era racista?

Afonso Nascimento – Professor de Direito da UFS

José Bento Monteiro Lobato é um dos mais importantes escritores racistas na história da literatura do Brasil. Essa é uma afirmação muito forte, especialmente porque gerações de brasileiros e de brasileiras têm ouvido e lido as histórias de Lobato que seus pais leram e suas professoras e seus professores podem ter recomendado como leitura. Em suma, muita gente leu livros racistas de uma pessoa e de um escritor racista. Eu não tive que passar por esse problema.

Quando eu era criança meus pais nunca leram histórias infantis pra mim. Primeiro, não tinham dinheiro para comprar livros e a primeira luta que travávamos era pelo dia-a-dia. Depois, se eles tivessem algum recurso a mais, não poderiam porque meu pai era analfabeto e, sobre minha mãe, tenho dúvidas se ela poderia enfrentar livros com tantas páginas e muitas letrinhas. Acho que a gente rezava antes de dormir. Quando  aprendi a ler, foi então que comecei a frequentar a biblioteca do Siqueira Campos (rua Bahia com Santa Catarina) e onde pude ler livros infantis. Mas nunca li Lobato.

Fiz leitura sobre Lobato décadas depois e então fiquei informado que ele era autor de livros infantis, um grande nacionalista (“A luta pelo petróleo”) e também racista. Foi assim que, sem nenhuma leitura, fiz um comentário na casa de um meu amigo advogado e economista morador da Atalaia, que tinha sido membro do Partido Comunista e do Partido dos Trabalhadores, e ele me respondeu de uma forma que fez calar a minha ignorância. O tempo passou, tive dois filhos para quem li histórias infantis, mas nunca passou pela minha cabeça ler Lobato para eles. Somente agora, em 2020, é que li um conto chamado “Negrinha” e o romance “O Presidente Negro”. Então formei opinião que Lobato era mesmo racista. Querendo mostrar a minha “aquisição”, puxei um debate entre os meus amigos numa rede social. O debate aconteceu em alto nível e eu fiquei enriquecido com mais informação sobre o famoso autor brasileiro.

Soube que ele nasceu no interior de São Paulo, bem no fim da escravidão brasileira. Seus pais e seus avós viveram o tempo da escravidão e é bem provável que eram proprietários de alguma escravaria. Formou-se em Direito e foi indicado promotor público, mas o que queria fazer mesmo jornalismo e literatura. Na capital dos paulistas, foi membro da Sociedade Eugênica de São Paulo e aceitou a indicação para ser o adido cultural brasileiro nos Estados Unidos. Se já gostava da “grande nação do Norte” aqui, Lobato se tornou lá ainda mais americanófilo. Queria que o Brasil tivesse a sua Ku Klux Klan (KKK), organização criminosa de brancos supremacistas que botavam os negros no “seu lugar” através da intimidação, das suas fogueiras, dos seus enforcamentos, além de outras formas de violência racial. Nada de integração dos negros na sociedade dos brancos. Depois desse desvio, propus que voltássemos ao debate que resultou da publicação de trecho do conto “Negrinha”.

Um meu colega de Faculdade de Direito, hoje vivendo em Tocantins como funcionário público aposentado, foi o primeiro a se manifestar dizendo antes que nunca tinha lido nada escrito por Lobato. Gostei de sua sinceridade! O que disse ele? Afirmou que o conto “Negrinha” não era racista e que ali se encontrava uma descrição de um autor que, com talento, descrevia uma situação em que a crueldade e o racismo estavam na fala dos personagens. Também completou com a afirmação de que “eugenia” poderia ter outro sentido, diferente daquele usado por pessoas racistas, mas não deu provas do que falava. Uma professora socióloga entrou na conversa e disse concordar com o jurista expatriado.

Quanto a mim, eu mantive a minha posição de alguém que tinha lido apenas dois trabalhos de Lobato, reforçando meus argumentos citando texto da Wikipédia segundo o qual o escritor era admirador da KKK americana. “De repente, não mais que repente”, entra no debate uma professora de Literatura Infantil da UFS e especialista na obra completa de Lobato, que elevou ainda mais o nível do debate! Ela também defendia a tese do Lobato racista e trouxe um caminhão de evidências extraídas dos muitos trabalhos do autor paulista! Os quatro parágrafos abaixo são cópia daquilo que essa professora escreveu.

“Professor de Direito da UFS (dirigindo-se a mim), a obra de Lobato é toda racista. Quando confrontada, mais tarde, com as cartas que trocou com amigos, durante 40 anos, tudo só se confirmou. O conto Negrinha não chega a ser o melhor exemplo disso, mas como estudiosa da Literatura Infanto-juvenil nos últimos 20 anos posso lhe dar mais dados. A propósito, ganhei hoje de uma professora da UFS, a obra completa em capa dura. Uma edição antiga para se juntar a outras que já tenho. Faço a comparação entre as edições e nunca houve reparo algum nos fragmentos que chegam a ser criminosos num país de maioria negra.

Desculpe-me se eu entendi errado, mas acho que o senhor advogado (o colega de Tocantins) está tentando fazer brincadeira com um assunto que não é engraçado. Até entenderia se estivesse usando exemplo do próprio Lobato para desconsiderar as justificativas sobre o racismo, mas parece que o senhor não conhece a obra, muito menos as cartas que foram disponibilizadas em 2012 para conhecimento público. Paro por aqui, pois não estamos brincando de quem ganha no final. Todos já perdemos com uma criatura como Lobato ser elevada à ícone da Literatura Infantil. Caro professor e caras professoras (aqui ela se refere a um advogado e professor Direito da UFS de Itabaiana e a duas professoras da UFS de Aracaju), com todo respeito que tenho pelo percurso de cada um de vocês, gostaria de que não tratassem como mero detalhe o fato de eu ser uma professora de Literatura Infanto-Juvenil, na UFS, desde o século passado. Advogado e professor de Itabaiana, não existe essa obra de “menor expressão” para você analisar. O Sítio foi um projeto de edição de 23 títulos, dentre eles: Reinações de Narizinho, Histórias de Tia Nastácia, Peter Pan, Caçadas de Pedrinho e tantos outros que trazem os fragmentos considerados extremamente racistas. Sei que é difícil esbarrar com essa realidade.

A justificativa do contexto não explica um escritor que desejava a Ku Klux Klan no Brasil. Não adianta tentar buscar na memória de criança de vocês um motivo para ninguém ter enxergado antes o teor incontornavelmente racista de várias obras, pois isso o próprio Lobato explica: “Vamos divulgar mais a eugenia. Eu faço isso de maneira indireta”. Nenhuma criança diante da versão de Peter Pan, do episódio de o Circo nos quais Emília pede para Nastácia calar a boca, pois “fada não aparece para gente preta”, ao que é repreendida por Dona Benta: “Mais respeito, Emília. Todos sabem que ela é preta só por fora.”; ou no fragmento que já postei aqui da apresentação de Nastácia ao “Respeitável público”; nenhuma criança iria se deter nisso diante do interesse na história, mas todos vocês devem conhecer as piadinhas a que as crianças negras, as poucas que chegavam à escola tempos atrás, foram submetidas: “beiçudas”, “cabelo duro”, “não é gente”, “macacas”, e todas essas expressões vocês encontrarão na obra.

Separemos mesmo o joio do trigo. É sempre difícil desconstruir. Continuarei com minhas pesquisas e, no que depender de mim, meus alunos e alunas sempre terão acesso ao que está na obra principalmente e, depois, nas cartas para poderem decidir o que devem sugerir como leitura para as crianças do séc. XXI. Repito aqui o fragmento mais completo do episódio de O Circo (contido sim, advogado de Itabaiana, no que mais tarde se confirmou como Sítio do Pica-Pau Amarelo, em 23 volumes):”Respeitável público, apresento-lhe a princesa Nastácia! Não reparem ser preta. Não é preta de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou e a condenou a ficar assim, até encontrar uma chave na barriga de um certo peixe. Então, virará uma linda princesa loura. “E novamente o fragmento de uma carta a Arthur Neiva que diz: “Enquanto não houver aí no Brasil uma instituição como a Ku Klux Klan para colocar o negro no seu lugar, o Brasil não será um país para alto destinos.” “Lobato chegou quase até a metade do séc. XX (1948) com as mesmas posições, racistas, em suas cartas. “

Com a entrada dessa pedagoga e da exposição de trechos e mais trechos de racismo manifesto de Lobato, parecia que o debate tinha acabado, mas não foi isso o que aconteceu. Foi aí que o advogado e professor, referido acima, entrou no debate e na defesa de Lobato. O que ele trouxe de novo para a troca de ideias sobre Lobato? Esquematicamente falando, ele disse que preferia lembrar do nacionalista Lobato atuando na campanha pelo petróleo brasileiro já mencionada.  Os seus argumentos não me pareceram fortes, pois não traziam evidências contrárias, como o fizera a professora de literatura infantil. O primeiro era aquele segundo o qual lera trabalhos infantis de Lobato e não se tornara um racista. Em outras palavras, ele era a melhor prova de que Lobato não era racista. Em relação a esse ponto as duas professoras, também citadas acima, concordaram com o advogado e professor de Itabaiana e disseram que também tinham feito tais leituras e nada lhes acontecera. O advogado e professor e as duas professoras são pessoas de esquerda. Os três trouxeram então para o debate um argumento de autoridade!

Isso merece um comentário. É embaraçoso para pessoas adultas e de esquerda afirmar que leram obras racistas de um escritor racista? Parece que sim, porque isso levanta a questão de saber quem leu ou quem indicou a leitura de Lobato para elas. Seus pais? Não acho que os pais possam ser criticados por isso. Provavelmente, não sabiam de nada de racismo em Lobato. Quantas gerações de famílias brasileiras podem ter lido e indicado à leitura os livros infantis de Lobato? Pessoas racistas podem dizer que a sua formação racista começou através da leitura de Lobato, considerando que na infância e na adolescência as pessoas tendem a guardar mais o que lhes é ensinado. Não sou quem vai resolver esse problema.

Outro argumento do advogado e professor de Itabaiana foi afirmar que o fato de Gilberto Gil e outros compositores aceitarem fazer músicas para a versão televisiva do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” era prova de que Lobato e seus trabalhos não eram racistas. A isso eu gostaria de perguntar se passagens flagrantemente racistas seriam colocadas nos episódios televisados. Claro que não! De novo, o que se nota é a apresentação de mais um argumento de autoridade. Em relação aos comentários, a professora de literatura trouxe mais evidências do contrário. Então, definitivamente, o debate tinha terminado. Quanto a mim, como sempre curioso, pedi emprestado coletânea das obras de Lobato para me aprofundar sobre o assunto, estando agora cada mais seguro do que nunca do quão impregnadas de racismo estavam a pessoa e a obra de Lobato.  PS: Os nomes das pessoas foram retirados e substituídos por aqueles de suas profissões

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