Carlos Trindade – é militante negro, economista, mestrando em Sociologia pela UFS (*)
Mais uma vez, desde 1989, quando retorna a normalidade democrática no Brasil após décadas de ditadura militar, a população vai as urnas expressar seus desejos no tocante ao futuro do país. Eleições, mesmo que a participação popular se restrinja basicamente ao ato de votar no modelo politico brasileiro, são sempre momentos oportunos de debate sobre os grandes temas nacionais.
45 anos após o lançamento da Carta aos Brasileiros, lida pelo Professor da USP, Goffredo Silva Telles Jr., no intuito de mobilizar a sociedade brasileira contra a ditadura militar, neste último dia 11 de agosto, também na Universidade de São Paulo – USP e em várias outras universidades e estados brasileiros, foi lançado um manifesto em defesa da democracia, assinado por mais de um milhão de pessoas representando segmentos diversos e até divergentes da sociedade civil brasileira. A novidade trazida por esta última manifestação reside no fato de incluir, para além da defesa da democracia, do estado de direito e de referendar as urnas eletrônicas, “pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual”.
No caso específico da questão racial – tratada historicamente como um não problema social dado as pregações do mito da democracia racial brasileira – esta cola no manifesto junto com a pauta democrática na conjuntura atual de graves ameaças aos cânones da carta de 1988 não é algo a ser menosprezado, considerando ainda que parte dos signatários usufruíram e usufruem de privilégios econômicos e sociais contrapostos a massa da população negra brasileira que sobrevive sob condições adversas no seu cotidiano.
Ao ser ratificado por amplos setores da sociedade civil, este documento reforça o imperativo de aprofundarmos o nosso regime democrático para além das formalidades já acatadas no seu modelo politico apontando luzes rumo ao alcance prioritário de uma maior equidade entre cidadãos e cidadãs brasileiros(as) na agenda politica do país, inclusive prevendo maior diversidade e participação no âmbito institucional. Esta não é uma tarefa simplória, a cargo de um grupo ou pessoa iluminada, nem será equacionada no curto prazo dado o conflito de interesses que lhes são inerentes.
O quadro de desigualdade racial que assola o Brasil não sofreu grandes alterações durante a vida republicana deste país, mesmo durante a vigência dos grandes projetos desenvolvimentistas dos governos Getúlio, Juscelino ou mesmo durante a ditadura militar. Os próprios avanços sociais e econômicos experimentados no período 2004/14 durante os governos petistas de Lula e Dilma, sofreram graves reveses políticos já no governo Temer com o apoio de setores médios da sociedade que se sentiram desprivilegiados não com a sua perda de status, mas com a melhoria na qualidade de vida na base da pirâmide social.
Mario Teodoro(2022) nos traz os fatores que sedimentam e mantêm de forma atemporal este quadro de desigualdade racial no Brasil: a) o não enfrentamento ou passividade do Estado frente a esta realidade; b) assimetrias nas áreas de educação, saúde, trabalho, moradia, etc, que existem em desfavor dos grupos discriminados; c) os mecanismos jurídicos institucionais e repressivos que atuam como mantenedores dessas desigualdades e, por fim; d) a forte oposição aos movimentos sociais que lutam para alterar este estado de coisas, tais como o movimento negro, feminista, sem-terra, sem teto, Lgbbtqi+, juventude, estudantil, etc.
Não custa observar que a inserção da pauta racial no manifesto da USP, decorreu da ação concertada de caráter afirmativo do movimento social negro contemporâneo, enfrentando grandes resistências ideológicas no espectro politico, seja a esquerda ensejando sempre o protagonismo da categoria classe em detrimento da categoria raça, seja a direita com a permanente exclusão da questão racial como uma demanda que requeresse atenção do Estado ou da sociedade.
Foi o movimento social negro contemporâneo que, em 1995, pressionou e o governo FHC reconheceu oficialmente que o Brasil é um país racista, assim como teve um papel preponderante, a partir de 2003, para que os governos petistas implantasse politicas de igualdade racial, aprovasse a politica de cotas e o Estatuto da Igualdade Racial. É o movimento social negro contemporâneo que vem estimulando a participação de ativistas nos processos eleitorais para ampliar a pressão pelo fim das desigualdades raciais, seja por dentro dos espaços de decisão e poder politico, seja nas ruas, contribuindo com a organização da sua base social.
Neste oportuno momento de alternância politica, é imprescindível não utilizar o poder do seu voto para eleger candidatos racistas, homofóbicos, machistas e aporafóbicos, dentre tantos outros que se alimentam politicamente do preconceito, da discriminação, da falta de respeito e empatia e da intolerância, sejam estes candidatos proporcionais ou majoritários. Cabe ressaltar que esta postura critica não deve se limitar a pessoas. Atores institucionais como igrejas, sindicatos, empresas, agentes culturais, servidores públicos, profissionais liberais, etc., devem protagonizar e contribuir nesta construção coletiva.
O “cavalo” da democracia está selado e disponível para ser ‘cavalgado’ por toda a sociedade brasileira ou, ao menos, pelo seu contingente antirracista que acredito, seja a maioria.
Achilles Mbembe nos assevera que: “Para construir este mundo que nos é comum, será preciso restituir àqueles e àquelas que foram submetidos a processos de abstração e de coisificação na história a parte da humanidade que lhe foi roubada. Nessa perspectiva, o conceito de reparação, além de categoria econômica, remete ao processo de recompensação das partes que foram amputadas, a reparação dos laços que foram rompidos, o reinicio do jogo de reciprocidade sem o qual não pode haver elevação em humanidade”. (Mbembe, 2018, p 313-314)
A hora é esta.
Por uma agenda coletiva, democrática, popular, antirracista, antifascista e multicultural para o Brasil.
Referência Bibliografica:
Mbembe, Achilles. Crítica da razão negra. São Paulo: Instituto Francês do Brasil, 2015.
Teodoro, Mario. A sociedade desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil. 1º ed. – ZAHAR, 2022.
(*) Carlos Trindade é militante negro, economista, mestrando em Sociologia pela UFS, ex Secretário de Planejamento e Comunidades Tradicionais da Secretaria de Igualdade Racial da Presidência da República de 2004 a 2008 e Presidente do Sindicato de Auditores e Fiscais de Tributos de Aracaju