O ativismo de Guido nas lutas pela terra na diocese de Propriá

Eugênio Nascimento – Jornalista

Em 1964, quando chegou ao Brasil e veio morar e trabalhar em Sergipe, aos 26 anos, o missionário belga Michel Dessy, mais conhecido em todos os municípios da diocese de Propriá como Guido, começou a desenvolver um trabalho de organização popular e sindical, que, conforme nos garantiu, deu bons frutos. Ele desembarcou em Sergipe juntamente com o padre Nestor Mathieu, também belga.

Ele chegou a Sergipe como redentorista (uma congregação missionária da Europa e que  veio também para o Brasil) e tornou-se um simples missionário para poder estar mais intensamente na luta do homem do campo.

Guido lembra que a opção pela diocese, que abrange também alguns municípios do sertão, foi feita por causa da pobreza dos moradores, a urgência de ajudá-los na luta contra a fome, a falta de empregos e ainda a necessidade de apontar um rumo melhor para todos, gerando esperança de que dias melhores viriam.

Inicialmente, ele se estabeleceu em Propriá e atendia a periferia da cidade, com ações mais frequentes em povoados. Era um trabalho, na sua visão, que unia, dava esperança e ânimo na luta pelo direito a uma vida melhor. Ele entende que essas ações, em Sergipe, eram precursoras e motivadoras para a igreja católica criar a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Para dar uma maior contribuição no campo, na década de 1970 engajou-se à Comissão Pastoral da Terra, um organismo criado em junho de 1975, em Goiânia (GO), durante o Encontro de Bispos e entre os seus fundadores estão Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno, Ivo Poletto, hoje vinculado ao Fórum de Mudanças Climáticas, e Antônio Canuto.

Guido, hoje com 83 anos e morador de Nossa Senhora da Glória, destaca: “A nossa missão era organizar os trabalhadores no campo e, com a criação da CPT, começamos a dar mais sentido a essa caminhada. Iniciamos conversas com os trabalhadores rurais sobre o direito à posse da terra, a criação de sindicatos para defender os seus interesses e conscientizar a todos sobre a importância da união para se protegerem”.

Tudo foi bem pensado e a articulação entre os religiosos da diocese foram ampliadas para ações conjuntas, tudo com clara participação e comando do corajoso e atuante bispo  Dom José Brandão de Castro. “Ele (Dom Brandão) acompanhava tudo, tinha conhecimento do que fazia a sua igreja em todos os municípios”, destaca.

Como reconhecimento ao bom trabalho que era desenvolvimento em Sergipe, Michel Dessy foi escolhido como membro da primeira diretoria nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984, e depois filiou-se ao Partido dos Trabalhadores (PT/SE)

O missionário explica que a década de 1980 foi bastante produtiva para os trabalhadores do campo, mas também muito agressiva por parte do aparelho policial em relação aos povoados do campo.  Nesse período, ocorreram as ocupações da Barra da Onça (Poço Redondo), Ilha do Ouro (Porto da Folha), Borda da Mata (Canhoba), Morro dos Chaves (Propriá) e as luta dos posseiros de Santana dos Frades (Pacatuba) e dos índios Xocó (Porto da Folha), pela posse definitiva da Ilha de São Pedro.

O hoje deputado federal pelo PT e nos anos de 1980 um dos organizadores do MST em Sergipe, João Daniel, comenta que  “eu conheci Michel Dessy no início de 1987. Tive a oportunidade de conviver com ele na Barra da Onça, nesse período. Ele foi da Coordenação Nacional do MST, foi um dos mais importantes militantes, um homem muito humilde, muito comprometido e muito lutador. Sempre foi um homem exemplar, ele nunca pedia para as pessoas fazerem, ele era sempre o primeiro a fazer”.

João Daniel diz ainda que Guido ajudou em muitas ocupações de terra. Ele ajudou com tudo que ele tinha. Ele sempre participou e ajudou na construção do Movimento. Eu aprendi muito com Michel Dessy. O deputado diz ainda, sem medo de errar,  que ele é um dos homens mais importantes e mais lutadores da história da luta pela terra em Sergipe”.

Chegou a ser pré-candidato a deputado estadual, sempre esteve conosco. O Michel Dessy é um homem exemplar, um cidadão do mundo, um grande revolucionário, capaz de sentir a indignação das injustiças e é um grande formador pelo seu exemplo. Michel é um grande militante do Partido dos Trabalhadores, do MST e da luta do povo brasileiro, em especial do  Sertão de Sergipe..

A luta intensa por parte dos trabalhadores rurais e as reações violentas por parte da polícia eram muitas. A pretexto de combater o roubo de gado, o governo de Sergipe, na época tendo à frente João Alves Filho, enviou policiais militares para fortalecer o enfrentamento aos supostos ladrões de gado. “Ocorreram muitos abusos, espancamentos e mortes. Trabalhadores rurais eram parados pela polícia nas estradas de acesso aos povoados, quando se dirigiam para a roça e eram espancados”, lembra Guido

Ele mesmo cansou de ser seguido e atingido por tapas de policiais, conforme narra.  Guido afirma: “O sertão de Sergipe sempre foi uma região violenta. Mas esse quadro assumiu proporções graves com as forças policiais atuando em um grupo chamado ‘A Missão’. Muita gente morreu e muita gente apanhou nas estradas que ligam as sedes dos municípios aos povoados”.

Também sofriam pressões policiais os freis Enoque e Roberto, que atuavam sempre comprometidos com as causas dos socialmente desfavorecidos, o povo do sertão.

Maria do Socorro, mulher de Guido, reforça as declarações dele dizendo que o tenente Wellington Costa, era apontado pelos trabalhadores como muito agressivo, seguia as determinações do então juiz de Propriá, Francisco Novaes.

Por causa do ativismo, Guido chegou a ser preso juntamente com o trabalhador rural Rubens em Poço Redondo. A polícia do tenente Wellington Costa fez as prisões e só os libertou depois de muitas pressões de religiosos, populares e políticas.

Conforme o sindicalista João 60, a polícia estaria lhe procurando na ocupação da fazenda Barra da Onça e encontrou Guido lá. O sindicalista afirma: “Guido e Rubens foram presos e torturados por que estavam na ocupação. Não cometeram nenhum crime. Eu tinha ido para a feira de Nossa Senhora da Glória”. Tal fato aconteceu em outubro de 1985.

Consultado, o padre Isaias Nascimento lembra que o juiz Novaes, que morreu por covid-19 em julho de 2020, “perseguia o povo pobre e os religiosos da diocese. Padres e missionários viveram momentos ruins. Os trabalhadores rurais bem mais ainda”.

Para Guido, que foi condecorado com o título de Cidadão Sergipano pela Assembleia Legislativa do Estado, em reconhecimento à sua luta, nos dias de hoje a violência sofreu redução. Mas, ainda assim, não dá para afirmar que o semiárido sergipano é uma região pacífica. Ele explica: “A violência foi consolidada em longa data. Há quem diga que se instalou no sertão nordestino desde a época do cangaço, no período entre 1889 a 1930,  e até hoje se faz presente”.

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