José Lima Santana – Padre, advogado e professor de Direito
O cangaceiro olhou para a casa de janela aberta. O bando passava a passo lento,
entrando no povoado miserável, xexelento, de casas de taipa e gente de pés no chão. Na
janela, uma mocinha, que não devia ter mais do que quinze ou dezesseis anos de idade.
Ela não parecia assustada com aqueles homens mal-encarados, bem montados, com
roupas cobertas de poeira. Fuzis a tiracolo, punhais atravessados na cintura. O bando
vinha de um tiroteio, na fronteira do estado vizinho. Alguns macacos mortos. Dois
cangaceiros mortos e um ferido, carregado numa rede dependurada nos arcos de duas
selas. Hemorragia. Ferimento na barriga. Era o irmão caçula do cangaceiro que olhara
para a janela, onde Mariinha estava coberta de inocência e, talvez, desejo.
“Capitão, naquela casa, ali atrás, à direita, tem uma moça na janela. Deixe eu
levar Tiro Certo para lá. Quem sabe, Nosso Senhor dá um valimento pelas mãos
daquela moça”, disse Adalberto Rompe Cerco, o lugar-tenente do chefe dos
cangaceiros. O capitão assentiu com a cabeça. E disse: “Faça como tu me pede”! Rompe
Cerco dirigiu ordens aos dois companheiros que conduziam, na rede, o irmão ferido.
Voltaram. Adalberto dirigiu-se à mocinha, que não tinha arredado pé da janela: “Boas
tardes, dona moça. Tem mais gente em casa? Este aqui na rede é meu irmão. Tá ferido.
Precisa das mão dum anjo pra vê s’incontra um valimento de cura”.
Mariinha estava só em casa. A mãe fora a um povoado distante, ajudar uma
parenta com dor de menino. Moravam sozinhas. O pai e os dois irmãos tinham arribado
para o sul, um ano antes, procurando cavar a vida na terra estranha. Um dia, mandariam buscar as duas. No sertão, cavava-se a vida e a morte. A moça não se fez de rogada. Ofereceu seus préstimos. O cangaceiro ferido foi levado para o interior da casa.
Deitaram-no na rede, no chão de terra batida. Mariinha rasgou a camisa ensopada de
sangue. Franziu a testa: “Parece mal. Mas, Deus tudo pode”. Dito isso, mergulhou no
interior da casa e voltou com uma bacia d’água, panos limpos, uma faca de ponta e um
alicate. Retornou e veio com um candeeiro aceso. Pediu que o irmão do moribundo
esquentasse a faca no bico do candeeiro. Limpou a ferida. Um tiro.
Adalberto Rompe Cerco admirou-se da disposição da moça, que não se
intimidou diante deles – ele e os dois que transportaram Tiro Certo. A tarde estava nos
soluços derradeiros, preparando-se para ceder lugar ao negrume da noite. O sol explodia
em vermelho e dourado. A mais esplendorosa de todas as mortes, na certa, era a do sol,
que, tingia o espaço com as cores estonteantes, que o celestial pincel modelava.
Mariinha tomou da faca. Estava acostumada a ajudar a mãe em precisões de
partos. Era uma mocinha destemida. Pediu que os três segurassem os braços e as pernas do ferido, que gemia gemidos soluçantes. Por sorte, a perfuração era quase rasa.
O gibão de couro devia ter amortecido o impacto da bala. O problema era que tinha perdidomuito sangue. O cangaceirinho, mais ou menos da sua idade, estava mais branco do que uma vela. Ela também estava acostumada a castrar frangos e bacorinhos, serviço que, desde doze anos, fazia melhor do que os dois irmãos, causando admiração ao pai. Com cuidado, fez a faca penetrar na ferida. O cangaceiro soltou um gemido grosso, como um berro. Ela parou. Mas, pouco esperou. Tornou a enfiar a ponta da faca, aquecida na chama do candeeiro. Topou no projétil. O rapaz estremeceu. Ela pediu para o irmão do ferido esquentar o alicate. Feito isso, fez o alicate penetrar na ferida. Não deu muito custo, e eis a bala de revólver extraída. A cirurgiã de ocasião lavou o ferimento. Fez uma compressa e uma faixa. Exclamou, enxugando o suor da testa: “Agora, é esperar por Deus”!
Os cangaceiros precisavam tocar o caminho. O rapaz ferido ficaria. Não havia
perigo de perseguição dos macacos, pois estavam em outro estado, no qual não haviam
ainda tido ou dado trabalho. Rompe Cerco estava agradecido. Orientou a mocinha a
encontrar alguém, para ficar com ela e o ferido, pois a sua honra não deveria ser
atacada, por abrigar um homem em sua casa, estando sozinha. Deixou dinheiro, para
alguma necessidade. O bando partiu. Rompe Cerco seguiu com um rebuliço no coração.
Estaria maluquecendo? Ao passar o alicate esquentado, sentiu o toque da mão da
mocinha na sua mão. Demorou um átimo, mas pareceu uma eternidade. Teria sido de
propósito? Um engraçamento? Pareceu-lhe que sim. Nunca tinha sentido nada parecido,
antes. Teria que voltar, pelo irmão ferido e por ela. À noite, amoitados na caatinga,
sentiu cólicas e acesso de vômito. O pensamento voltado para Mariinha. Seria sua. Seria
a primeira mulher num bando de cangaceiros. Seria sua, e de mais ninguém. Jurou pelo
Padim Ciço. Logo, a sua família seria formada por ela e seu irmão, a quem deveria
cuidar, tão moço que ainda era.
Passadas seis semanas, numa boquinha da noite Rompe Cerco voltou ao
povoado. Sem a costumeira indumentária, para não chamar a atenção. Precisava saber
do irmão. Precisava rever a sua pretendida. Ah, o olhar dela, quando o bando passou em
frente à sua casa…! O olhar da mocinha foi direto no seu olhar. Achou mesmo ter
percebido um sorriso, que seria para ele. Naquele instante, brotou um alvoroço no seu
coração de homem embrutecido. Não ousou dizer nada, por ora, ao capitão, mas a
levaria consigo, junto com o irmão, se curado estivesse. O único irmão, já que os três
outros tinham tombado no cangaço, anos antes.
O cangaceiro apeou do cavalo. A porta da casa estaca aberta. “Ô de casa”! De
dentro, a resposta: “Ô de fora”! A mãe de Mariinha acudiu ao chamado. O visitante se
identificou. Ela chamou pela filha, que estava ainda mais bela. Um sorriso de flor aberta
iluminou o seu rosto ao vê-lo. Ele não teve dúvida: ela era sua. Mariinha gritou:
“Roberto, teu irmão tá’qui”! Adalberto Rompe Cerco recebeu o abraço do irmão, que
estava bem. Quando se desenlaçaram, o rapaz segurou a mão de Mariinha e disse:
“Mano, eu vou largar essa vida do cangaço. Encontrei a mulé da minha vida”. Adalberto
amarelou. O sangue lhe fugiu das veias. Caçou chão sob os pés e não achou. De chofre,
avermelhou. O sangue voltou. Quente. Uma fornalha parecia lhe queimar o corpo
inteiro. Não perderia a sua mulher para homem nenhum, nem mesmo para o irmão
caçula, único ainda vivo. Desaforo daquele tamanho, homem nenhum suportaria. A
moça seria sua ou de ninguém. Lavaria a sua honra com o seu próprio sangue, o sangue
do seu irmão. Sacou do parabélum e grunhiu: “Ela é minha”! Mariinha pôs-se diante de
Roberto, o primeiro rapaz por quem ela se engraçou, e, abrindo os braços, disse: “Deixe
disso, Adalberto. Roberto e eu, a gente tem um destino. Se tu quer matar, mate os dois”.
Rompe Cerco levantou a mão, segurando a arma com firmeza. Lá fora, o Saci, ave
cuculiforme do sertão (Tapera naevia), tida, na voz do povo, como agourenta, cantou:
“Buraco feito”! “Buraco feito”! A mãe de Mariinha suplicou: “Valei-me, meu bom
Jesus”! Na sua mão, a luz do candeeiro bruxuleava.