O fascismo não pode acontecer no Brasil

Afonso Nascimento
Professor do Departamento de Direito da UFS

Sinclair Lewis foi o primeiro americano a ganhar, em 1930, o Prêmio Nobel de Literatura. Em 1935 escreveu um romance chamado “Não vai acontecer aqui” (LEWIS, Sinclair. Não vai acontecer aqui. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2017). Essa obra de ficção teve muito sucesso nos anos 30 do século passado. Recentemente, com a chegada Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, tem ocorrido uma nova procura desse livro pelos americanos. Foi lendo livros sobre a pós-verdade etc., que descobri esse romance político e o nosso interesse por sua leitura veio por causa da eleição de Jair Messias Bolsonaro, o primeiro político de extrema direita a chegar ao poder no Brasil.

O livro tem pouco mais de quatrocentas páginas e a sua narrativa agradável está distribuída em trinta e oito capítulos. A sua tradução para o português é muito boa. Leitores mesmo com pouco conhecimento da história e da cultura dos EUA não terão nenhuma dificuldade em compreender integralidade do livro e a mensagem do autor é alcançada com facilidade. Em 1935, o fascismo era o regime que se tinha imposto em partes da Europa e não foram poucos os países cujos líderes flertaram com a implantação desse modelo político para suas populações. No Brasil, na mesma década de 1930, os integralistas ou fascistas brasileiros tentaram, depois do fracasso dos comunistas alguns anos antes, tomar o poder à força, mas foram devidamente reprimidos pelo ditador Getúlio Vargas.

Nos Estados Unidos, muita gente se perguntava naquela década: será que um regime fascista pode ser implantado em solo americano? A resposta era invariavelmente a mesma: “isso vai acontecer aqui” ou “não pode acontecer aqui” (“it can´t happen here”), que é a tradução literal do título do livro. Os americanos pareciam demasiadamente seguros quanto a descartar essa possibilidade. O que fez o seu autor? Um ano antes da eleição presidencial que reelegeu mais uma vez Franklin D. Roosevelt em 1936, Sinclair Lewis resolveu escrever uma obra de ficção em que Roosevelt perde a eleição e um regime fascista é implantado nos EUA por Berzelius Windrip, um político demagogo, ex-senador, populista, prometendo fazer a América grande de novo e levar prosperidade para todos. O leitor deve recordar que a América ainda vivia o período da Grande Depressão. Eram tempos de críticas à democracia liberal, aos partidos políticos, etc.

A figura central desse romance político é Doremus Jessup, sua família e pessoas a ele relacionadas. Ele vivia em Fort Beulah no estado americano de Vermont, fronteira com o Canadá francês, onde era editor chefe de um jornal provinciano chamado The Informer e onde a maior parte das ações acontece, além de Washington, Nova York etc. À guisa de informação, no ano de 1935, Mussolini e Hitler já estão no poder, sem deixar de mencionar Stálin na União Soviética. Isso permite que Sinclair Lewis tenha uma ideia do que é um regime totalitário e possa adaptá-la à realidade norte-americana. Voltando ao que interessa, o fato é que Berzelius Windrip resolve construir, pela via eleitoral, seu estado fascista na América.

O ditador fascista americano Berzelius Windrip, na sua campanha eleitoral, apresentou quinze temas de sua plataforma, entre os quais destacamos a colocação de todo o sistema financeiro sob o controle do Banco Central, a garantia da propriedade privada diferentemente dos comunistas, os negros ficam proibidos de votar, de exercer o direito e a medicina, as mulheres devem voltar a seus deveres domésticos, a defesa do comunismo, do socialismo e do anarquismo passa a ser punida com trabalhos forçados e até com a pena de morte, retirada dos poderes do Judiciário, o Congresso ganha poderes consultivos, etc.

Uma vez empossado, Berzelius Windrip fundou um regime que foi designado como Corporativista, chamado também de Corpoísmo ou ainda Corpo. Fez uma nova centralização do espaço político-administrativo, passando por cima do federalismo americano; criou campos de concentração para dissidentes ou suspeitos; estabeleceu a censura nos meios de comunicação e no sistema escolar como um todo; realizou prisões em massa; estimulou a deduragem para saber quem era ou não era leal ao regime; promoveu torturas por toda a parte; transformou empresários em algo como funcionários do estado; os tribunais de justiça amordaçados ou só com juízes leais ao regime; mandou realizar fuzilamentos e execuções sumárias de opositores; transformou os Minute Men numa espécie de SS americana (lembrando que os Minute Men, antes figuras históricas que, na guerra pela independência contra a Inglaterra, eram os civis armados que primeiro chegavam a fazer combate às tropas inglesas ou que avisavam de sua aproximação) que tinham espiões e agentes por toda parte. Naturalmente, não foram poucas as fogueiras de livros ditos perigosos ou subversivos.

A resistência contra o estado fascista foi criada. Era composta de pessoas de vários tipos: liberais, patriotas, comunistas, etc. Quando os resistentes corriam risco de morrer ou de serem presos, podiam fugir para o Canadá, país que também recebera escravos fugitivos durante a Guerra Civil americana. Lá ficava o comando da resistência e várias células. O chefe da resistência era o candidato derrotado Walt Trowbridge na eleição presidencial que elegeu Windrip.

O envolvimento do liberal Doremus começou com sua indignação com o que estava acontecendo, aos poucos, até ele fazer parte da resistência. Doremus Jessup foi preso duas vezes. Depois da primeira prisão, conseguiu fugir e levar consigo partes da tipografia de seu jornal, com o que passou clandestinamente a publicar panfletos e outros impressos, até ser preso e ser libertado novamente.

O fascismo Windrip teve a duração de dois anos, após o que foi deposto por dois de seus principais ministros, isto é, Lee Sarason (Ministério das Relações Exteriores) e Dewis Haik (Ministério da Defesa). Depois do golpe, Windrip foi mandado para a Europa, para onde o ditador tinha remetido milhões de dólares americanos. Entre os planos de Windrip estava fazer uma guerra contra o México, como forma de desviar a atenção dos problemas locais. Na verdade, os seus planos expansionistas incluíam fazer guerra e anexar toda a América Latina. Depois da queda de Windrip, foi a vez de Lee Sarason ser apeado do poder pelo coronel Dewis Haik.

O fim do estado fascista ocorreu devido a três causas, sendo a primeira a invasão dos EUA por bandos mexicanos, a rede de resistência (“New Underground”) no Canadá e nos Estados Unidos e por rebeliões internas que foram se tornando mais comuns e que culminaram com a captura e a prisão de Haik. Walt Trowbridge assumiu o governo interinamente prometendo fazer eleições. O livro termina com uma aceitável patriotada de Sinclair Lewis para quem, representando o liberalismo num sentido positivo, “um Doremus Jessup jamais morrerá”.

Na nossa leitura do romance, a mensagem que passa Sinclair Lewis é que o fascismo podia acontecer em qualquer país. Mas que, diferentemente de certos países europeus, a sociedade americana já naquela época, com sua forte tradição liberal, passado o susto inicial, tinha anti-corpos (sem trocadilho) capazes de não permitir a persistência de um tal regime. Seria Donald Trump uma ameaça fascista nos dias de hoje? Muita gente pensa que sim, enquanto outros dizem que não.

Com relação a Jair Bolsonaro, um político mais abertamente fascista no discurso do que Trump, pensamos que, através dele, uma ditadura de qualquer outro tipo não pode acontecer no Brasil. Temos know how em termos de autoritarismo, é verdade. Mas ele jamais será um “führer” ou um “duce” brasileiro ou estará à frente de um regime autoritário e a opção fascista tem sido descartada pelos militares. Se o país mergulhar numa ditadura com Bolsonaro, ele só poderá estar na condição de ventríloquo ou então estará afastado do poder.

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