O “jeitinho” militar na ditadura

Afonso Nascimento – Professor de Direito da UFS

O “jeitinho” não é uma invenção brasileira. Com efeito, em todas as sociedades, pessoas em posição de poder, encontram modos de “dar um jeito”, de interpretar, de torcer ou distorcer as regras sociais, com o objetivo de atender a pedido ou pressão de alguém para beneficiar-se ou ajudar a outrem. O problema do jeitinho brasileiro é a abrangência, que no Brasil é extremada. O “jeitinho” pode ser dentro ou fora da lei. Consiste em uma relação em que uma pessoa faz um pedido e é atendido. Quando não é atendido, isso significa que a manobra não funcionou. Nesse tipo de relação pessoal, o que importa é saber quem tem acesso, direto ou indireto, a pessoas que podem satisfazer a demanda de quem pede. Nenhuma instituição estatal e social brasileira escapa dessa forte tradição do “jeitinho”, ou seja, na Justiça, na Igreja Católica, nos Tribunais de Contas, nas Forças Armadas, etc.

Durante o regime militar brasileiro (1964-1985), os militares sergipanos ou vindos de outros estados estacionados no Sergipe provinciano, tradicionalista e onde até hoje todos parecem conhecer-se, foram objeto de muitos desses pedidos de jeitinho, atendendo ou não aos seus demandantes. Antes de apresentar uma pequena lista de casos de jeitinho, preciso dizer que, depois do golpe de 1964, os militares do Exército passaram a ser muito paparicados, bajulados, convidados para esse e aquele evento familiar ou não, recebiam presentes (presentes fazem amigos), apareciam com frequência nas colunas sociais dos jornais, como explica o historiador Ibarê Dantas no seu livro “Tutela Militar em Sergipe. (Ver outros exemplos nessa obra) Quem não queria ter um militar como amigo ou ter acesso a militares? Para muita gente, penso que o Quartel do 28 BC passou a significar muitas coisas, como, por exemplo, uma prisão, uma delegacia, o palácio do governo e, por último, uma instância judicial alternativa para resolução de conflitos pessoais e políticos. Entretanto, pelo que se sabe, não chegou a ser uma casa de tortura pelo menos até antes de 1976, quando ocorreu a “Operação Cajueiro”.

Passo agora a apresentar algumas situações em que se recorreu ao famoso jeitinho dos militares. Pois bem, além de sindicalista, José Silvério Leite Fontes foi um professor e militante católico que trabalhou no Colégio Ateneu e na Faculdade de Direito de Sergipe e ocupou cargos políticos em governos estaduais. Comandou uma greve dos professores secundaristas em 1963. Com o golpe de 1964, foi convocado ao 28º BC, onde foi interrogado e indiciado em Inquérito Policial Militar por causa da referida greve. Para sua sorte, ele tinha um irmão militar que trabalhava no 28º. BC e era primeiro tenente do Exército. Juntamente com seu problema de saúde (diabetes), essa presença de parente em lugar estratégico contribuiu para amenizar seus conflitos com as leis dos militares e com a Justiça Militar.

Há um caso mais que interessante de um contínuo do Banco do Brasil que fez amizade com o comandante do 28º BC e foi transformado em “autoridade”. Seu nome era Fernando Machado Tiúba. Quando comandantes novos eram destacados para servir em Aracaju, esse senhor era procurado. Gozava de prestígio entre os militares. Problema arranjou um certo militar aqui recém-chegado quando tentou “pô-lo no seu lugar.” O contínuo fez queixa ao comandante que, por sua vez, mandou chamar o militar. Quando entrou na sala do comandante, ele encontrou o contínuo na companhia do seu superior hierárquico, comportando-se os dois como se fossem bons amigos. Nesse caso, o militar foi “enquadrado”. Que tipos de serviços esse contínuo teria prestado aos militares?

Robério Garcia era irmão de Luiz Garcia, o ex-governador de Sergipe. Era um conhecido comunista que há muito militava no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1968, Robério Garcia foi procurado pelos militares, mas não foi preso. Longe disso. Ele foi “guardado” na Clínica Psiquiátrica Santa Maria, situada na rua Espírito Santo, no bairro Siqueira Campos. O proprietário da clínica era o médico Hercílio Cruz – que prestava serviços médicos eventuais aos homens da caserna – o qual “guardou” Robério Garcia na sua instituição e lá o manteve até quando foi permitida a sua saída. Não tinha problema de saúde mental nenhum, mas tinha uma família com prestígio social e político. Essa mesma clínica foi usada como prisão de verdade para a comunista Jacinta Passos.

O caso mais conhecido exemplo de jeitinho na história da UFS é aquele envolvendo o reitor João Cardoso do Nascimento Júnior e a ordem do comandante militar para expulsar os estudantes que participaram do congresso estudantil da UNE, em Ibiúna, no interior paulista, em 1968 (Ver José Vieira da Cruz, “Da autonomia à resistência democrática”, onde são encontrados outros exemplos). O reitor recebeu uma lista que foi completada por outra contendo mais nomes de estudantes que os militares queriam ver fora da UFS. O que fez ele?

O reitor adiou o quanto pôde a tomada de decisão cabível, isso, note bem, acontecendo já na vigência do AI-5. Recebeu várias correspondências de autoridades militares cobrando a medida esperada e ele mesmo teve de ir ao quartel do 28º BC e depois à sede da 6ª Região Militar, em Salvador, para se explicar. A esse respeito, tem um depoimento do reitor que mostra o constrangimento por que passava. Ele dizia mais ou menos isso: “esses estudantes são filhos e filhas de famílias que eu conheço. Como ficarei eu depois de expulsar esses alunos, não for mais reitor e continuar a viver em Aracaju?”

Foi assim que ele encontrou o jeitinho de “cassar os direitos políticos” dos estudantes “subversivos”. Cassar direitos políticos estudantis dentro da UFS era algo que não existia em qualquer documento jurídico. O corajoso reitor tinha encontrado o seu jeitinho de não cumprir a ordem militar. Indo além, como o reitor cumpriu seu mandato de quatro anos na reitoria da UFS, pode-se dizer, no frigir dos ovos, que os militares fizeram “vistas grossas”. Embora isso nunca seja mencionado, penso que os militares também devem ter recebido muitos pedidos das famílias de classe média dos estudantes como pressão para que nenhum dos estudantes fosse expulso da UFS.

Outro exemplo de uso do “jeitinho” envolvendo militares, estudantes secundaristas e a direção do Colégio Ateneu de Sergipe ocorreu quando, depois do golpe militar de 1964, ordem partida do comandante do 28º BC mandava a diretora expulsar alunos também considerados “agitadores” pelos militares. Diferentemente do caso de não expulsão acima mencionado, a direção do Ateneu cumpriu a medida determinada pelo 28º BC. Aí ocorreu uma grande mobilização dos pais, mães, parentes e amigos para que fosse feita a revogação da expulsão. Nesse caso, foi o próprio comandante militar, também pressionado, quem encontrou o jeitinho de transformar a expulsão em transferência – pois, se fossem expulsos, aqueles jovens não poderiam se matricular em outra escola. Assim os estudantes secundaristas do Ateneu puderam se transferir para outras escolas em Aracaju e fora de Sergipe.

Um caso no mínimo curioso envolveu o próprio comandante do 28º BC. A militante do Movimento de Educação e Base (MEB), Maria José Oliveira, foi presa e acusada de subversão. Os militares que montaram o dossiê da educadora, anotaram que ela era a diretora do Colégio Módulo. Quando o processo chegou às mãos do comandante, ele imediatamente mandou soltar a professora porque não podia prender a diretora da escola em que seu filho estudava!

Como fica a imagem dos militares depois do relato desses casos de jeitinho envolvendo os homens fardados de verde-oliva? Não tem nada demais. Até melhora a sua percepção pública. Além disso fica a constatação que as instituições militares não estavam e não estão imunes ou vacinadas contra a cultura do jeitinho, que segue forte em Sergipe e no Brasil.

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