O juiz e o bicho-de-porco

José Lima Santana
Padre, advogado e professor da UFS

No alpendre da pensão de Dona Carminha do finado Tonho de Maria de Zé
Afonso, dormitava o senhor juiz de direito, numa cadeira de balanço, aproveitando um
ventinho que de vez em quando soprava, meio morno, pois o verão estava no auge.
Fevereiro, nos seus meados. O sol vinha castigando o sertão desde outubro. As últimas
chuvas tinham caído no início de setembro, uns tamboeiros, um quase nada, barrufo que
mal deu para pagar a poeira. O inverno não tinha sido bom. Chuvas esparsas de maio a
julho. O juiz, Dr. Armando Fonseca Pires, pouco trabalhara no ano findo. A comarca
estava sem promotor de justiça há quase dois anos. Um promotor substituto aparecia,
quando aparecia, uma vez a cada quinze dias. Audiências criminais na pauta, com réus
presos, que eram poucos, outras audiências de família, questões de alimentos, e só. O
juiz roncava mais do que motor de caminhão velho a subir uma ladeira bastante
íngreme. A pança subia e descia como um fole resfolegando.

Chica Preta, cozinheira da pensão, achegou-se com um pirex de doce de goiaba
batido. Chamou o juiz. Uma mosca lambia seus beiços. O magistrado espantou o inseto
intruso com a mão esquerda. Ajeitou-se na cadeira. Olhou para a cozinheira. “Seu
docinho, doutor. Acabou de esfriar”. Ele sorriu: “Obrigado, Chica!”. Depois de bater o
pirex cheio de doce, deu mão da moringa ao seu lado. Bebeu dois copos. Água de
moringa era uma delícia. E a água de beber da cidade, da fonte de Aristides da Furna da
Onça, era quase mineral. Água leve, que descia limpando a goela, coisa de dar gosto.
O juiz tirou o sapato do pé direito. Uma coceirinha no dedão do pé, que vinha
lhe incomodando há dias. O local estava até inflamado e avermelhado. Ao chegar em
casa, teria que ver aquilo. Tentou levantar-se, enquanto Chica Preta sumia no interior do
quintal, no qual o juiz tanto gostava de caminhar, de manhã cedo. Chica foi alimentar os
seis bacorinhos, que já, já, seriam vendidos por Dona Carminha. A pança do juiz o
impediu no primeiro tanjo. Então, ele apoiou os dois braços nos braços da cadeira e, a
custo, levantou-se com um gemido. Olhou o relógio. Faltavam quinze para as quatro.
Dali a pouco, a marinete de Pedro Moreira passaria, no rumo da capital, para enfrentar
oitenta e cinco quilômetros de terra batida até alcançar o asfalto da rodovia federal.

Quinta-feira. Dia de retornar para casa. As tarefas judicantes semanais estendiam-se da
terça à quinta-feira. Despachos no Fórum improvisado, que funcionava na Câmara
Municipal, e que só tinha sessão à noite, duas por semana. Raras audiências. Um ou
outro despacho no Eleitoral. As fofocas de sempre, alardeadas pelo tabelião Maneca
Mãozinha e pela escrivã, Dona Helenita de Tavarinho. Sem contar com os préstimos
noticiosos do oficial de justiça, Paulo Timboco, o maior raparigueiro do sertão. Mais de
quinze filhos.

O Dr. Armando estava na comarca há seis anos. Viu três colegas seus, mais
novos na função, serem promovidos, passando à sua frente. Um deles, era sobrinho do
vice-presidente do Tribunal. O outro era genro do governador. O terceiro, neto de um
general de pijama. E ele não tinha pistolão. Naquela época, o Tribunal não seguia regras
para as promoções. Era, pura e simplesmente, a veneta dos doutos desembargadores.
Tempos brabos. Para complicar, a família dele era do PSD, enquanto o presidente do
Tribunal, desembargador Cardoso, e o governador eram da UDN. Ele estava metido
num atoleiro. A sua esperança era que o noivado com a neta do velho deputado
Fulgêncio Amado Porto, udenista, prosperasse, como prometia. Quarentão, corpulento,
pouco tinha se dado em namoro depois da morte prematura da primeira namorada, sua
colega de turma, que falecera um mês antes da formatura. Câncer. Um desgosto
profundo.

Dez anos depois da morte da namorada, duas tentativas de namoro foram por
água abaixo. Há um ano, namorava com Estelinha, viúva sem filhos, dois anos mais
velha do que ele, mas, parecendo uns cinco ou seis anos mais nova. Ela era diretora de
uma escola pública noturna, na capital. Uma mulher prendada, inteligente, que escrevia
poemas para um jornal. Estava preparando-se para publicar o primeiro livro.

Uma buzina estridente soou e ressoou. Era a marinete. O juiz comprava dois
bilhetes, pois ocupava dois assentos no ônibus. O filho de Dona Carminha era o agente
da Viação Eldorado, empresa de uma marinete só. Os bilhetes do doutor já eram
permanentemente reservados, no primeiro banco. Mala na mão, o juiz desceu os seis
degraus da pensão para a rua. O motorista da marinete, Vavá Curiboca, pegou a mala do
doutor, cumprimentando-o: “Boa tarde, doutor. Vamos seguir viagem com a graça de
Nosso Senhor!”. Segurando no corrimão da marinete, o juiz subiu com certo esforço.

Três horas e meia de uma viagem cansativa e empoeirada, com uma parada em
Córrego Largo, à meia distância entre a comarca e a capital. Enfim, em casa. A irmã,
Dona Almerinda, dez anos mais velha, solteirona, com quem ele morava, o recebeu com
o jantar em ponto de bala. O juiz tomou banho, vestiu a roupa de dormir e foi à mesa. O
jantar foi um regalo: salada de bacalhau com frios, robalo ao molho de camarão, arroz à
grega, purê de maças. Dispensou a sobremesa. Tomaria uns dois cálices de vinho do
Porto.

Na manhã seguinte, o juiz pediu o parecer da irmã sobre a inflamação no dedão
do pé direito. Ela o apalpou e não teve dúvida no diagnóstico: “Meu querido irmão,
você está com tungíase ou tunguíase”. Professora aposentada de Ciências, ela deu uma
ligeira aula: “A Tunga penetrans é a menor das pulgas e tem como característica ser
hematófaga. Ela pertence ao gênero Tunga, família Tungidae, classe dos insetos, ordem
dos Sinfonápteros, ramo dos Artrópodes. Tem como hospedeiro preferencial o porco,
mas também o homem e outros animais”. E emendou, no seu jeito debochado, herdado
do pai, que Deus o tivesse: “Desse jeito, senhor juiz, vossa excelência jamais será
promovido para a tão sonhada segunda entrância. Além da barreira da UDN, o senhor
tem como sócio um bicho-de-porco. Um juiz assim nunca será promovido”.

Colhido de surpresa, ele franziu a testa e disse: “O seu veredicto é terrível. Aliás,
mais terrível do que a caneta do presidente do Tribunal, que me ignora”. Então, o jeito
foi os dois caírem na gargalhada. Depois, com uma agulha esquentada numa vela, para
matar germes, Dona Almerinda extirpou o bicho-de-porco. O olhinho preto, ou seja, o
próprio parasita, nadando numa massa espumosa, as larvas, que o povo chamava de
lêndeas, como as de piolhos. Aliviado, disse o irmão: “Bem, um empecilho eu já não o
tenho. Quanto à UDN, essa praga você não pode retirar do meu caminho”.

O magistrado que esperasse por melhores dias, para ser promovido. Por ora, iria
encontrar-se com a namorada. Ouviria versos.

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