Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS
Não sei se existe bibliografia tratando dos donos de engenho em Sergipe. Claro, sobre a história da economia açúcar, pensei que os dois livros de Josué dos Passos, o sobrinho, são fundamentais. Acontece que o enfoque do ex-reitor da UFS está centrado nos números e nas estatísticas, mas não em pessoas. Veio assim o meu interesse em reler, recentemente, o livro de Orlando Dantas publicado em 1980 (DANTAS, Orlando Vieira. A vida patriarcal em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980) dois anos antes de sua morte. É desse livro (o último dos três outros publicados por Orlando Dantas) que gostaria de falar um pouco, apresentando, primeira e rapidamente, o seu autor.
Orlando Dantas foi dono de jornal e jornalista. O seu jornal, primeiro chamado “Gazeta Socialista” e depois “Gazeta de Sergipe”, foi um marco na impressa progressista em Sergipe. Enquanto proprietário e jornalista, Orlando Dantas imprimiu uma linha editorial daquelas que justificam afirmar que a democracia se alimenta de uma imprensa livre, crítica e investigativa. O seu jornal cumpriu esse papel durante a precária democracia existente antes da ditadura militar e ao longo desse mesmo regime autoritário. Além de dono de jornal e de jornalista, Orlando Dantas também foi um político (deputado estadual e federal), que começou na UDN (Esquerda Democrática), pelo Partido Socialista e terminou na ARENA, o partido da ditadura militar. Problemas com dinheiro no final de sua carreira empresarial? Não sei dizer. A sua contribuição como homem político de progressista e nacionalista é, entretanto, muito maior do que essa adesão tardia ao regime que ele tanto criticou.
Ademais de proprietário de jornal, jornalista e político, Orlando Dantas ainda foi dono de engenho na condição de herdeiro de seu pai, Manoel Vieira Dantas, homem político que ocupou o cargo de governador de Sergipe antes da Revolução de 1930. Com a modernização tecnológica conhecida pela economia do açúcar, os donos de engenhos que puderam transformaram as unidades produtivas em usinas, como era o caso da Usina Vassouras, de sua propriedade. É enquanto neto, filho e dono de engenho que Orlando Dantas escreveu “A vida patriarcal em Sergipe”. Esse seu livro é aquele em que se concentrou em descrever a vida dos donos de engenho em Sergipe. Consiste numa autobiográfica de alguém escrevendo sobre a sua família e sobre a classe social a que pertencia. A sua descrição parece convincente. O livro não tem pretensão de ser um trabalho acadêmico e são pouquíssimas as citações nele contidas. Por isso mesmo, não vale a pena mencionar os seus muitos problemas formais.
Quem eram os donos de engenhos de cana de açúcar de Sergipe? De acordo com Orlando Dantas, eram fidalgos lusitanos que conseguiam da monarquia portuguesa terras (através dos títulos de propriedade conhecidos sesmarias. O grande livro de Felisbello Freire traz uma relação desses títulos) para estabelecer suas plantations de cana de açúcar, a saber, agricultura comercial de exportação, especialmente a partir do século XVII e XVIII. Sobre a origem social dessa gente fidalga, não posso me conter em fazer o comentário seguinte. Considerando o enorme número dessas “terras de ninguém” distribuídas para construir a economia da cana em todo o Nordeste, se toda essa gente possuía origem fidalga, não devem ter sobrado homens ricos e nobres em Portugal com a colonização do Nordeste.
Esses “engenheiros” abastados que vieram fazer a América em Sergipe tinham muito trabalho e despesas pela frente. Primeiro precisavam construir as suas casas-grandes e as suas senzalas. Em seguida, depois de terem comprado escravos africanos ou brasileiros, desmatavam suas extensões de terra para o plantio de cana e construíam os seus engenhos, locais de produção para transformar a cana em açúcar para ser exportado. No livro de Orlando Dantas, há uma descrição de como se dava todo esse processo produtivo, com a intimidade e o conhecimento empírico de um dono de engenho. Esse é um bom momento do livro.
O livro “A vida patriarcal em Sergipe” poderia ter sido nomeado como “Casa-Grande e Senzala em Sergipe”? Acho que sim. Além da afinidade intelectual (mas não política) de Dantas com Gilberto Freyre, existem passagens no livro que lembram a obra publicada em 1930 pelo autor pernambucano. Dantas descreve como se deu uma parte da miscigenação da população sergipana nos canaviais, nas cozinhas e nas senzalas entre brancos e negras – só esquecendo de dizer que esses intercursos sexuais nem sempre eram consensuais, além de também serem uma forma de reprodução da força de trabalho escrava e “livre” em Sergipe.
Dantas descreve como eram as férias e as festas dos meninos e das meninas de engenho, as relações dos meninos de engenho com os meninos morando no engenho, as hierarquias sociais e familiares entre homens e mulheres, os meios de transporte por rios e por terra, o trato dos donos dos engenhos primeiro com escravos e depois com trabalhadores “livres” domésticos ou não. Há uma passagem que me chamou a atenção. Quando termina o período de férias, os meninos de engenho devem partir e voltar as suas escolas, enquanto os meninos morando nos engenhos ali permanecem sem estudar. Então, com consciência da injustiça social, Dantas se pergunta: para que estudar? Para plantar e cortar cana não havia nem há necessidade de estudos.
Pela apresentação da enorme quantidade de engenhos, é de concluir-se que era grande a classe social dos donos de engenhos. Eles eram centenas – embora hoje em dia a gente encontre, viajando pelo interior de Sergipe, apenas algumas chaminés de engenhos desativados e no seu espaço a criação de gado. Além de serem muitos e serem economicamente muito ricos na colônia, na província e na república, os donos de engenhos também eram os donos poder. Com essa riqueza e esse poder, eles construíram a patrimonialista sociedade sergipana, traço esse que tem resistido aos tempos. Entre os donos de engenhos, havia aqueles mais ricos que mandavam seus filhos estudar Direito e Medicina em Portugal e depois no Brasil mesmo. Preparavam, assim, quadros para formar a classe política e a magistratura sergipana e brasileira. Além disso, muitos se nobilitaram com títulos da nobreza durante o Império (daí os títulos de barão, etc. portados por certo número de sergipanos) e fizeram parte da sociedade de corte do Brasil.
Embora Dantas não trate disso no seu livro, os donos de engenho e depois de usina formaram um grupo social muito homogêneo (homens brancos, portugueses e católicos) que tinha uma mentalidade um tanto curiosa. Eles se consideravam uma aristocracia (por serem “proprietários de homens, mulheres e crianças”, na expressão de Gilberto Freyre, e por conta da longeva dominação sobre homens “livres e assalariados”), mas, ao mesmo tempo, tinham cabeças de comerciantes, já que a sua agricultura era comercial, voltada para o mercado.
Com engenho mas sem arte (em lugar da arte usaram a violência), os donos de engenho e de usina foram os principais responsáveis pelo processo civilizador em Sergipe, para o bem ou para mal, segundo a leitura de cada um. Amoldaram a sociedade sergipana muito mais que fazendeiros e comerciantes. Porém constituem elites sociais que praticamente desapareceram do mapa de Sergipe – diferentemente do que ocorreu em Pernambuco e em Alagoas. Em meados do século passado, transferiram seus recursos para outras áreas da economia como a pecuária, a indústria, o comércio, etc. por conta da crise da economia do açúcar em Sergipe. Hoje ainda existem algumas usinas e plantadores de cana, uma multidão de pobres e belos casarios em diversas cidades sergipanas como, por exemplo, a bela Laranjeiras, como que a lembrar os melhores e velhos tempos do universo dos donos de engenho que Dantas, um deles, contraditoriamente progressista, muito bem soube descrever.