Afonso Nascimento
Professor de Direito da UFS
Pelas contas que fizemos, quatro engenheiros governaram Sergipe do fim da ditadura de Vargas até hoje, numa política hegemonizada por bacharéis em Direito. Cronologicamente, foram os seguintes: José Rollemberg Leite, Leandro Maciel, Paulo Barreto de Menezes e João Alves Filho, tendo José Rollemberg Leite administrado por dois mandatos e João Alves por três períodos. O inexpressivo Paulo Barreto e a raposa Leandro Maciel governaram por uma vez.
A engenharia não é uma dessas áreas que favorecem o ingresso na política como, entre as “profissões imperiais”, o Direito e a Medicina. Dito de outra forma, a prática da engenharia não propicia a criação de clientela eleitoral, mas, dependendo de quem sejam os engenheiros, fatores diversos (esquemas partidários, pertencimento a famílias de políticos, nomeação por regimes autoritários, etc.) podem ajudar diplomados em engenharia a fazer carreira política.
Em relação a Leandro Maciel, de acordo com sua filha Annete Maciel e o historiador Ibarê Dantas, ele teria sido o exemplo de um indivíduo vocacionado para a política. Nesses casos, pouco importa a profissão escolhida pela pessoa. É sobre político Leandro Maynard Maciel que trata o novo livro de Ibarê Dantas publicado em fins de 2017 (DANTAS, Ibarê. Leandro Maynard Maciel na política do século XX. Aracaju: Criação, 2017). Antes de abordar esse novo trabalho desse profícuo historiador brasileiro, gostaríamos de fazer alguns comentários.
Ibarê Dantas menciona na parte final de seu livro o sociólogo da política Max Weber e aborda rapidamente o tema da vocação política. Isso merece um esclarecimento porque, em passado não muito distante, caímos na armadilha de que fala o ditado italiano: “traduttori, traditori”. Isso significa dizer que os tradutores traem o que os autores escrevem na sua língua nativa. Esse é muito bem o caso da famosa conferência de Weber sobre “a política como vocação”, pequeno e brilhante texto que lemos pela primeira vez nos anos 1970. Afinal, qual é o problema, perguntará o leitor. Ele reside no fato seguinte. A tradução correta do artigo é “a política como profissão” (“Politik als Beruf”), porque a palavra Beruf (mal traduzida como vocação), usada por Weber, é isso que significa. A mesma coisa seja dita em relação ao outro artigo do mesmo Weber: “a ciência como vocação” também deve ser entendida como “a ciência como profissão”.
No caso da afirmação da filha de Leandro Maciel, mencionada no livro de Osmário Santos, não resta dúvida sobre o que ela quis dizer. Quanto ao historiador Ibarê Dantas, isso está implícito na parte em que ele trata do envolvimento político de Leandro Maciel na Bahia e menos levemente no penúltimo parágrafo do último capítulo do seu livro. Como já dissemos em mais de uma vez, não existe vocação para nenhuma profissão: as pessoas vão sendo socializadas, aprendendo disposições, etc. e, em seguida, fazem escolhas profissionais. No caso de Leandro Maciel, embora tenha pouco vivido com seu pai, cresceu sabendo que seu pai tinha sido um homem político importante durante o século XIX, bem como que sua família era parte da aristocracia social e que outros políticos existiam do lado paterno e do lado materno. O fato de ter ingressado na política não terá sido surpresa para ninguém do seu grupo familiar e para outros grupos familiares e partidários que lhe eram próximos.
Esse novo livro do historiador Ibarê Dantas é uma fonte de prazer para quem o lê. Conforme ele mesmo afirma, o gênero biográfico nunca fora o foco do seu interesse intelectual. Em muitos dos seus livros, ele esboça muitos perfis biográficos, mas parece que tomou gosto em escrever biografias políticas quando justamente se debruçou sobre a vida política do pai de Leandro Maciel, por ele chamado de “o patriarca da Serra Negra” e cujo nome real era Leandro Ribeiro Siqueira Maciel. No livro seguinte escrito após a biografia do pai de Leandro Maciel, o historiador de Riachão do Dantas certamente fez uma nova incursão pelo gênero, ao fazer a biografia social de sua família. Depois dessas duas incursões e mais essa agora, em nossa opinião, também nessa área se tornou um mestre. É preciso ir um pouco além do que dissemos. A biografia de Leandro Maciel é um livro agradável leitura, bem escrito, em que se percebe o historiador, sempre cuidadoso com suas fontes, e aliado a isso tudo com uma narrativa que prende qualquer leitor interessado no assunto.
Num livro com cerca de quatrocentas páginas, capa dura e costurado, o nosso historiador maior expõe a trajetória política desse que foi, durante algum tempo, a maior liderança política de Sergipe. Para fazer isso, contou com a disponibilização dos arquivos do biografado pelos seus familiares, entrevistou pessoas antes e a partir do objetivo de escrever o livro, leu o que existe em termos documentação, relacionou novos títulos sobre a política sergipana e assim por diante. Escreveu o seu livro como alguém que já tratou de todos os temas relevantes da história política sergipana. Seu trabalho principal consistiu assim em colocar em alto relevo a figura do político polêmico biografado. Acrescentemos algo mais ao que acabamos de afirmar. Tivemos a impressão de que o grande historiador encontrou o espaço apropriado dessa sua biografia para destacar muito mais e adequadamente os acontecimentos políticos de 1947 e de 1952, relativos à repressão aos membros do Partido Comunista Brasileiro, antes de Leandro Maciel chegar ao poder.
Tratando da relação de Leandro Maciel com os comunistas sergipanos, essa é uma parte do livro muito importante. A despeito de Leandro Maciel ser um político de direita e conservador, por conta dos seus laços com familiares e de amizade com pessoas da família Garcia de Rosário do Catete, a sua terra também, ele se aproximou pragmaticamente dos trabalhadores urbanos sergipanos. Os membros dessa família que interessa mencionar para o caso são Luiz Garcia, membro do partido fundado por Leandro Maciel (que será após este também governador de Sergipe), o advogado Carlos Garcia e o jornalista Robério Garcia, sendo os dois últimos os membros do PCB. Essa parceria política foi benéfica para os dois grupos, ou seja, o engenheiro e político pôde aumentar o seu eleitorado e os comunistas conseguiram se estruturar livre mas não legalmente em Sergipe por, pelo menos, oito anos, antes do golpe militar de 1964. Sem falarmos do tempo do ex-udenista e governador que foi Seixas Dória.
O perfil que sobressai de Leandro Maciel no livro de Ibarê Dantas é aquele de um “animal político”. Impressiona a sua determinação, a perseguição de seus objetivos, o seu pragmatismo. O nosso historiador o chama de “líder sóbrio, atencioso, polido”, mas usa muitos eufemismos (“práticas coercitivas”, “atividades coercitivas”) para não dizer sem rodeios que também se tratava de uma liderança violenta e truculenta. Refraseando, a política sergipana nos dois governos do PSD e nos dois governos da UDN foi feita de muitos assassinatos, espancamentos, violência policial contra quem estava na oposição. A história foi um pouco assim: depois do ciclo de violência política do PSD veio a revanche talvez mais violenta da UDN. A sua filha Annete Maciel no livro referido acima dá a entender que a violência política de então era de briga de gente do interior, salvo erro nosso, e que o seu pai não era diretamente parte do faroeste entre pessedistas e udenistas. Já Ibarê Dantas trata da violência política, mas o faz sem ser mais direto com as palavras.
Leandro Maciel exerceu muitos cargos políticos por nomeação e muitos outros obtidos através de eleição (deputado estadual e federal, senador, governador). Praticamente, viveu todos os grandes momentos da política sergipana no século XX. Foi um homem nascido no fim do século XIX, num mundo agrário, rural e ainda cheio de mandões políticos. Atravessou o tenentismo, a ditadura dos interventores (sendo um deles seu primo Augusto Maynard), o golpe de 1964 e a ditadura militar, para, na primeira metade dos anos 1970, ser ejetado da política. Quando os militares estiveram no poder, gozou de algum prestígio por ser uma liderança e por pertencer ao partido golpista que também era a UDN. Sofreu com o “fogo amigo” de novas lideranças de seu partido e respondeu a inquérito da Comissão Geral de Inquérito (CGI) por enriquecimento ilícito. Ganhou e perdeu muitas batalhas na sua longa trajetória política. Como engenheiro governador realizou muitas obras, mas não chegou nem perto das realizações do engenheiro e empresário de João Alves Filho – coisa que também pode ser dita a respeito dos outros engenheiros governadores.
Para terminar essas anotações, gostaríamos de recuperar uma frase de historiadora famosa se referindo Ibarê Dantas: “a vida é curta para contar tantas histórias”, dando a entender que ele ainda tem muita coisa para dizer para o mundo. Embora seja historiador, não liga para o tempo. Ibarê Dantas continua disciplinado, monitorando a realidade política brasileira e sergipana através de jornais, revistas, livros e na internet e, ano após ano, lançando mais livros novos. O que será que ele está aprontando para 2018?