Alexandre de Jesus dos Prazeres*
Bacharel em Teologia, Mestre em Ciências da Religião e Doutor em Sociologia
Viralizou na internet o vídeo do bolsonarista que distribuía marmitas em uma comunidade de pessoas carentes. Enquanto documentava em vídeo sua ação “caridosa”, ele pergunta para uma senhora se esta era eleitora de Bolsonaro ou do Lula. Ao ouvir desta – “Lula” –, o bolsonarista retruca: “Lula? Então ‘tá’ bom, ela é Lula, a partir de hoje não tem mais marmita. É a última marmita que vem aqui. A senhora peça para o Lula agora, beleza?”
Este episódio me fez refletir acerca de duas declarações que nos oferecem o que pensar. A primeira é atribuída ao falecido arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista.”
Distribuir comida aos pobres é algo de bom tom, expressão de caridade cristã, mas interrogar acerca das causas da pobreza ou do por quê há pessoas dependendo da caridade dos outros, é algo político e incômodo, até mesmo perigoso. Pode levar o pobre a se conscientizar, “Trabalho, trabalho e não tenho nada”, como diz a letra da canção de Edson Gomes, cantor de reggae do recôncavo baiano. “Eu vivo aqui, no submundo. Buracos, favelas, Guetos e mundos. E eles me chamam de brasileiro, porém eu me sinto um estrangeiro.”
Os pobres não devem ter consciência política, não devem se tornar agentes de transformação histórica, devem se resignar e aceitar o destino, a sina ou a “vontade divina”, “o mundo é assim mesmo e não há o que fazer.” Os pobres são dignos de compaixão e objeto da caridade e, deste modo, os caridosos podem ser vistos como santos. Os pobres devem ser gratos pela sorte que possuem, quando são alvos da caridade de pessoas tão boas.
Que fique claro que não estou negando a necessidade de ações emergenciais de distribuição de alimento, roupas e artigos necessários à sobrevivência, por parte do Estado e da sociedade civil. Até mesmo porque seria absurdo filosofar sobre os rumos da história e as injustiças do mundo, enquanto as pessoas se contorcem de fome. Saciar a forme é urgente, principalmente em um momento da história nacional no qual as pessoas recolhem ossos nos açougues para fazer sopa. Todavia, é preciso fazer questionamento sobre as razões das coisas serem assim. E entender que os pobres necessitam clamar por justiça social e não somente serem objeto da caridade. O direito à vida, à moradia digna, à alimentação, à saúde, à segurança e à educação é uma questão de justiça e não um favor feito aos pobres.
A segunda declaração que o episódio do vídeo do bolsonarista “caridoso” me trouxe a memória está no romance “Homens e Caranguejos”, escrito pelo pernambucano Josué de Castro, autor de obras como “Geografia da Fome” e “Geopolítica da Fome”. A declaração foi feita por “Zé Luís”, o pai do menino “João Paulo”, protagonista do romance. O contexto é o da enchente no Recife que deixou os moradores do mangue desabrigados. Com o recuo das águas, os moradores começam a reconstrução das suas moradias. É neste momento que uma alma “caridosa” (para não dizer alma sebosa) surge, “Januário”, recém nomeado subdelegado da zona. Este oferecia “ajuda em materiais para a construção de casas a todos os moradores que, sabendo ler e escrever, se apresentassem no correr da semana na sede do partido do governo para tirar seus títulos de eleitor ou revalidá-los para as próximas eleições.” A resposta de “Zé Luís” à oferta de “Januário” é introduzida pelo autor do romance da seguinte forma: “Inexplicavelmente, Zé Luís, que sabe ler e escrever, recusou a oferta. E quando o Januário, magoado, lhe perguntou por que a recusava, ele deu esta resposta enigmática. – Porque na minha fome quem manda sou eu.”
Desde que li este romance pela primeira vez há 20 anos nunca me esqueci desta resposta de “Zé Luís”, ela se tornou uma filosofia de vida para mim e o Zé se tornou o meu herói. Porém nem todos os pobres possuem a força, a coragem e as condições de Zé Luís para dizer: “na minha fome quem manda sou eu.” E assim sucumbem as ofertas “caridosas” que são feitas. A mais emblemática é a oferta de compra de voto, seja por dinheiro, comida, auxílio médico, promessa de emprego, ou por outra razão qualquer. Mas também pode ser a do empregador que nega direitos ao trabalhador, lucra com seu trabalho, e se revolta quando o trabalhador luta por seus direitos e por melhorias salariais, pois o trabalhador deve somente se sentir grato por ter um emprego. A fome é a necessidade urgente que pode ser explorada por outros em benefício próprio. Tal necessidade coloca o explorado em situação tal que mesmo sendo explorado se ver obrigado a ser grato ao seu explorador.
Assim, a discussão sobre justiça social é o reconhecimento de que todos temos direito a uma sobrevivência digna. E que o combate a pobreza através de políticas públicas que objetivam libertar os pobres de condições de vida degradantes e da exploração política é um imperativo moral. Pois a sociedade não pode se julgar civilizada enquanto aceita que pessoas continuem existindo em condições desumanas porque isto atende aos interesses de alguns.