João Augusto Bandeira de Mello
Escritor e Procurador-geral do MP de Contas
Por que será que distopias fazem tanto sucesso? Por que obras como 1984 (e o seu Big Brother sabendo de tudo e decidindo por todos); Matrix (a realidade imposta e as pílulas azul e vermelha); Exterminador do Futuro (as máquinas como ameaça, e seu loop interligando de modo necessário futuro e presente); Jogos Vorazes (e a luta pela vida como entretenimento), entre tantas outras, são consagradas pelo público?
Tenho dois palpites: o primeiro, porque todas estas realidades alternativas nos levam à reflexão; nos trazem a lembrança de que a caminhada para o futuro se revela em cada decisão do presente; e que cabe a nós escolher a realidade que queremos ver construída no futuro. (E nos servem de alerta para verificarmos para onde estamos nos levando, pois via de regra, para o bem ou para o mal, se seguimos verdadeiramente um caminho, chegamos lá.)
E o segundo, de certo modo paradoxal ao primeiro, porque todas estas estórias são de certo modo assustadoras; e o medo atrai, fascina, e nos alivia, quando o elemento aterrorizante vai embora. E, neste ponto, nossa realidade, permeada de dramas, tragédias e injustiças (ou seja, inúmeras distopias localizadas, consubstanciadas em desigualdade extrema, crimes bárbaros e mortes perfeitamente evitáveis), acaba por ficar mais amena, quando comparada a mundos catastróficos de trevas; guerras generalizadas; carências, violência e perseguições globais.
Ou seja, as distopias (como quase tudo na vida) tanto ensejam a inquietude que pode levar a uma mudança positiva; como podem servir como um bálsamo para aguentarmos/sustentarmos o status quo. Tudo isto ao mesmo tempo. Um verdadeiro duplipensar (pensar de forma antagônica, equilibrando interesses diversos, como expressado na Obra 1984, de George Orwell), que alfim e ao cabo denota a necessidade de uma escolha individual e coletiva (entre a energia e a anestesia) acerca do modelo de sociedade que queremos, e onde desejamos chegar na construção de nosso próprio futuro.
Como o querido leitor já deve ter intuído, eu adoro distopias (E você, também gosta?) Recentemente, terminei de ler Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que trata de um mundo totalitário onde as pessoas não mais contemplam, não mais convivem, não mais poetizam. As pessoas vivem operacionalmente cada um seu papel, mas sem se espantar, sem estranhar, sem indagar os famosos “por que”, “para que”, “de onde”, “para onde”, “com quem”. Neste caso, o pensamento dominante tenta impor um vazio existencial, para que os indivíduos sejam verdadeiros autômatos em manada, e, desta forma, sempre correndo, e sem tempo, não imprimem a marca de sua individualidade no mundo – sua presença.
E o pior é que, em que pesem os fortes estímulos do governo totalitário, grande parte da população renuncia por conta própria à sua presença indagadora e marcante no mundo. Preferem estar sempre correndo, cumprindo check-lists, praticando exercícios intermináveis; ou com os olhos em telas assistindo reality-shows sucessivos como se fosse uma extensão familiar. (Será que não tem alguma semelhança com momentos do mundo moderno em que vivemos, onde temos ímpetos de cada vez mais automatizarmos nossas vidas?).
E como falei no início, gostei do livro, porque ele me levou a uma reflexão: Será que estamos sendo impulsionados a viver em bolhas experienciais, onde vivenciamos todos, as mesmas modas, programas e emoções? Será que em vez de marcarmos nossa presença no mundo, será o mundo que subtrairá nossa presença de nós? E, neste ponto, estaremos todos igualados, vivendo no automático, como se acelerássemos nossas existências com um controle remoto, vivendo um evoluir de tempo, mas sem evolução material e de espírito?
Então o artigo é sobre isso. Sobre a necessidade de mantermos acesa e de forma positiva, a chama de nossa presença no mundo. Mas como fazê-lo? Penso que de três modos: estimulando nossa presença com nós mesmos; nossa presença com o outro; e nossa presença com o futuro. Comecemos com a presença individual, o estar consigo mesmo. O ato contemplativo de não apenas observar, mas estar interagindo, se sintonizando e fazendo parte da plenitude do mundo. Sei que talvez isto seja meio abstrato demais. Tentarei explicar com uma experiência, vivida agora no início do ano.
Todo janeiro, vou com minha família para uma casa de praia, aplacar o meu desejo de nordestino do litoral, e minha necessidade (e felicidade) de estar respirando (a maresia no ar) com a leveza e suavidade da brisa, e o abraço de aconchego da imensidão do mar. (Em Recife ou Aracaju, e parafraseando papai, em seu famoso poema, vivo a vida “fiel a meu posto”, tal qual um jangadeiro, “vou navegando no mar” (do dia-a-dia) e no “suor do próprio rosto”).
E lá, na casa de praia, sempre em algum momento, procuro dar uma caminhada só, sentindo a areia, reparando no colorido das pequenas conchas e o espanto da sua simetria, colorido e diversidade; o vai e vem da água, em eterno ciclo molhando os pés. Admirando o pôr-do-sol, em seu espetáculo diário e sempre inédito, de dança de tons sutis de fogo e sensações. E sempre finalizando com um banho de mar, que, como disse, o mar me abraçando, e mais, me acarinhando e ensinando sobre a grandeza e maravilha da vida. Tudo porque somente percebemos o deslumbramento e transcendência do mundo, se estamos presentes para receber o presente que o mundo pode nos proporcionar. Presente este que se reitera em cada instante. Presente que para desembrulhar, somente é preciso olhar e perceber… (E muitas vezes ausentes e aéreos, distraídos entre consumos e problemas, deixamos os momentos maravilhosos escorrerem perdidos entre nossos dedos).
Mas a presença não se revela apenas no encontro com o mundo. A presença ainda é mais impactante no encontro da presença com o outro. Quando compartilhamos, interagimos; estamos junto, e mais do isso, estamos juntos. Quando, mais do que ouvir o som de cada palavra dita pelo outro, esperando o momento de dizer e protagonizar o que estamos sentindo; escutamos e refletimos sobre o que o outro disse, nos importando com o que foi dito, e agregamos esta experiência para o patrimônio de nossa existência (e do outro).
Nos últimos tempos, pela modernidade, estamos vivendo experiências nefastas de monólogos coletivos. Reuniões de pessoas, e todas juntas e solitárias (muitas vezes no zap), cada uma falando de si, e de seu universo, que de tão maravilhoso, parece merecer conquistar todos os outros. Conversas que se sobrepõem sem muito nexo entre si, cada um tentando impor sua visão e sua agenda. Ou todos, tal qual Fahrenheit 451, discursando superficialmente sobre a última notícia majoritária, o mais recente cancelamento, o meme mais engraçado, o produto de consumo que acabou de ser lançado.
O problema é que não conseguimos escrever nossa história sozinhos. Sim, temos que ser protagonistas (inclusive de nosso futuro, como veremos adiante), mas se saímos do ponto “A” e chegamos no ponto “B”, isto aconteceu à custa de muito esforço de nossos pais, irmãos, cônjuges, professores, amigos, desconhecidos, que cooperaram conosco, nos ensinaram, nos ampararam e consolaram nos erros cometidos, e nos ajudaram a corrigi-los. (E a maravilha de alcançar o ponto “B”, não é só a chegada em si, mas principalmente o aprendizado na caminhada, que nos faz ver mais longe, como sempre digo, amparado no ombro destes queridos companheiros de caminhada gigantes).
Assim estar presente no mundo, não é correr uma maratona, correndo de forma desembestada, sem olhar para trás ou para o lado, em busca do seu destino. Estar presente no mundo e na vida, é ser presente em cada relação e interconexão humana; aprendendo e evoluindo em cada conversa, em cada desabafo, em cada momento em que foi possível enxergar a dor do outro e consolá-lo, e assim ajudando a aplacar nosso próprio sofrimento.
Tudo porque evoluir significa crescer; e crescer sempre dói, na medida em que, para tanto, precisamos sempre e continuamente, de forma concreta ou metafórica, de novas roupas, novas camas, novos paradigmas, novos pontos-de partida. E desapegar é sempre doloroso (se é difícil deixar uma caneca querida para trás, imagina abandonar uma visão parcial de mundo); e como disse, para aguentar esta dor que acompanha o evoluir, sempre precisaremos do apoio, consolo e estímulo de decisão, que advém do estar presente, ser presente e, principalmente, escutar o outro.
Mas, apesar de absolutamente relevante, tudo o acima discutido, ainda não é o bastante; pois para a marcar a presença do indivíduo no mundo, não basta aprender com as conexões físicas e humanas (no sentido de estar em sintonia com o mundo e com o outro). A presença pressupõe um sentido, um trilhar de caminho e transformação. Ou dizendo em outras palavras, a presença demanda deixar marcas, rastros ou pegadas, revelando o que se viu, o que se passou, o que se fez de diferença, no mundo e na história, com sua vida.
E se estar presente demanda um agir; surge, portanto, o dever ético, diante de tudo o que foi aqui discutido, de que esta presença, este agir, seja positivo, e esteja alinhado com a evolução do indivíduo, do outro e do mundo. É o que a filosofia quer dizer com honrar todas as nossas condições de possibilidade (a utilização de toda nossa potencialidade e humanidade) na construção de um futuro alvissareiro e distributivamente justo para todos os indivíduos.
Por isso, o estar presente, também apresenta este componente, ao mesmo tempo obrigacional e funcional, de revelar um dever coletivo de cada um, de construir, no âmbito de suas ações, um mundo melhor para a atual e futuras gerações. Estar presente, portanto, é ter um sentido de futuro. Ou de outra sorte, estar presente é ser um presente, para si mesmo, para o outro e para o futuro.
Aliás, neste ponto, não podemos deixar de fazer a conexão entre o dever ético e humano de ser presente e a missão do servidor público. Isto porque se é dever de todos servir a si e ao outro; tal dever se amplifica e potencializa para aqueles que escolhem (isto mesmo, é uma opção) o caminho do serviço público. O servidor, em sua grandeza e humildade, é um verdadeiro operário do futuro. Sua presença sintetiza tudo o que o foi discutido acima. Ele é um observador do mundo, um ouvinte do coletivo, em busca de pavimentar seus objetivos – objetivos, filosóficos e jurídicos que se encontram em uma confluência de caminhos e se alinham na necessidade (e demanda constitucional) da construção de uma sociedade livre justa e solidária.
Finalizando o raciocínio e voltando às distopias; como disse, eu as aprecio bastante, e talvez por isso, até ousei escrever um conto com elementos distópicos: “o último filme da vida”, publicado aqui em minha coluna no “Primeira Mão”; e que fala de questões que causam perplexidade a nós humanos, como a certeza do exato momento da morte; a qualidade das conexões com as pessoas próximas, e como a realidade conta por si só várias histórias, distintas ao olhar de cada observador.
No conto, procurei me basear em estudos sobre a felicidade, que diz que as pessoas mais felizes são as que se conectam com os outros de forma verdadeira, e que buscam transcendência em seus legados. São pessoas que caminham sempre para a frente, mas quando eventualmente olham para trás, têm uma história edificante para contar. Mais ou menos como a lição maravilhosa sobre a Utopia trazida pelo cineasta argentino Fernando Birri (e perpetuada nas palavras de Eduardo Galeano).
Quando indagado sobre para que serve a Utopia, disse Birri: “a Utopia está no horizonte, eu sei muito bem que nunca a alcançarei; que se eu caminhar dez passos, ela ficará dez passos mais longe. Quanto mais eu buscar, menos a encontrarei porque ela vai se afastando à medida que eu me aproximo.
Boa pergunta, não? Para que serve a utopia? Pois a utopia serve para isso: caminhar”.
Então, colhendo o ensinamento acima sobre a utopia, e a alegoria do filme sobre a vida; analogamente poderíamos perguntar: para que servem a distopias? Repetindo o que disse no início, diria que servem como limite para o roteiro do filme de nossas vidas; lembrando-nos como alerta, todos os dias, para as histórias que nossas presenças no mundo nunca devem querer contar…
Foto:Pixabay