Clóvis Barbosa*
Temístocles era um mestre, mestre respeitado, admirado e te-mido. Sobre ele contam-se muitas histórias que acabaram por incorporar-se ao anedotário da época de uma Aracaju romântica. De tão jocosos, alguns dos causos podiam até ter ocorrido com outros, mas lhe eram atri-buídos por brincadeira dos seus amigos gozadores. Como professor, fez a fama de durão, daqueles que quando adentrava a sala de aula os alunos tremiam. Foi também respeitado proprietário de uma das melhores esco-las particulares de Aracaju e que formou várias gerações. Depois de mui-tos anos administrando a instituição e ministrando aulas, cansou, colo-cando aquele estabelecimento à venda. Dada a sua tradição e os rele-vantes serviços prestados à educação no Estado, o Governo resolveu ad-quirir e incorporá-lo ao seu patrimônio, transformando-o numa escola pú-blica. Temístocles, então, passou a viver dos juros da venda do colégio, de uma aposentadoria e do aluguel de alguns imóveis que possuía. Ho-mem rígido, introspectivo, dificilmente ria e não gostava de muita intimi-dade com quer que seja. Tratava os assuntos e seus interlocutores com certa frieza. Era bastante econômico nas palavras e se considerava um homem temente aos ensinamentos bíblicos. Frequentador da Catedral Metropolitana, na Missa dos domingos, sempre estava acompanhado dos seus filhos e da mulher, a sua querida Janete, a quem sempre homena-geava com o epíteto – Foi um presente de Deus! Nas férias, gostava de veranear na praia de Atalaia, e uma vez a cada dois anos viajava com a família para o Rio de Janeiro, onde adorava se hospedar em Copacabana.
Conservador e vaidoso até a medula, gostava de ser recebido por autoridades políticas. Não confessava nem às paredes em quem vo-tava nas eleições e o mesmo comportamento cobrava dos filhos e da mu-lher. Era rigoroso na educação da prole, para quem passara o seu modo de ver o mundo. Torcedor do Sergipe, ia aos jogos sempre com um boné vermelho contendo o escudo do clube e os dizeres: O demolidor de cam-peões. As décadas de 1950/1960 fizeram a capital sergipana passar por um processo de crescimento em todas as direções. Com o aterramento da rua Vila Cristina pela Prefeitura, aquele logradouro passava a ser o point dos ricaços da cidade, que ali começaram a construir as suas sun-tuosas residências. A inauguração do Edifício Atalaia, na Avenida Ivo do
Prado, tornava-se um símbolo de modernidade e local de visita diuturna pelo povo aracajuano, envaidecido e emocionado com a sua beleza ar-quitetônica e altura de dez andares. Surgia a nova e moderna Estação Ferroviária do Bairro Siqueira Campos. Foram criadas as Faculdades de Direito e de Medicina de Sergipe que, além de revolucionarem o ensino superior no Estado, com o surgimento de outros tantos cursos, seriam elementos importantes para a instituição logo depois da Universidade, ou-tro grande sonho sergipano. A vida cultural estava efervescente e a Ga-leria de Artes Álvaro Santos era o espaço de encontro dos poetas, cronis-tas, contistas, escultores e pintores. Pois bem. Apesar dessas mudanças que a capital vinha sofrendo, era ainda uma cidade provinciana, onde a maioria das pessoas se conheciam e tinham como habitualidade falarem umas das outras. A hipocrisia predominava.
O Senadinho, entre o Palácio do Governo e a Assembleia Le-gislativa, era o ponto de encontro dessas figuras. Triste de quem pas-sasse por ali e não parasse para trocar dois dedos de prosa. O professor Temístocles – sempre às quintas-feiras pela tarde – frequentava o local. Apenas ouvia e pouco opinava. Era o dia que colocava o seu melhor terno – sempre com colete – feito pelas mãos primorosas de Eugênio Alfaiate. Dizia em casa que iria para o Palácio Olímpio Campos saber das novida-des políticas. Mas a verdade é que Temístocles, apesar de todo seu mo-ralismo, era dado a um rabo de saia. Não podia ver uma garota “mais ou menos” que logo a olhava de cima a baixo, principalmente a parte traseira, sempre, claro, de soslaio e com impecável discrição. Aliás, ele se achava, nesse aspecto, o homem mais discreto do mundo. Coitado, se ele sou-besse o que se conversava dele no Senadinho! Abelardo, por exemplo, uma mistura de estudante de direito e gozador, quando o professor se aproximava dizia entre dentes: – Lá vem o homem da matinê das quintas-feiras do Miramar! Temístocles achava que ninguém sabia da sua amante Cinelândia, uma das mulheres mais bonitas do elenco de prostitutas do Cabaré Miramar. Todas as quintas-feiras à tarde, chovesse ou fizesse sol, a boate fechava para atender o “doutor-professor”, assim denominado por Tonho do Mira, o seu proprietário. Abelardo, que também tinha um caso com Cinelândia, soube desse privilégio – e fofoqueiro como era – passou logo adiante no Senadinho. Por sinal, fruto desse romance extraconjugal, e de outros, nosso personagem central passou por algumas cenas pito-rescas ou, por que não dizer, verdadeiras enrascadas.
A primeira ocorreu quando ele voltou para casa, numa quinta-feira, já depois do horário habitual. Como era britânico em seus compro-missos, Dona Janete – com a mesa pronta para o jantar – logo questio-nou: – Onde estava até essas horas, homem? Ele, entre nervoso e disfar-çado, disse: – No Palácio com o governador que estendeu a conversa e eu não tive como me livrar. Jamais seria indelicado com Sua Excelência! Era ela quem cuidava de suas roupas e logo notou que faltava uma peça
do indefectível vestuário e, imediatamente, com as mãos nos quartos, es-bravejou: – Oxente, Temístocles, cadê o seu colete? Surpreso e passando as mãos sobre o seu peito, onde deveria estar a peça do seu vestuário que é usada sobreposta à camisa, não se fez de rogado: – Roubaram! Puta merda, aquele palácio só tem ladrão! Referia-se ao Palácio de Go-verno para onde ele sempre dizia dirigir-se naquele dia da semana. Ja-nete, que tinha o seu marido como o homem mais fiel do mundo, disse: – Eu logo vi! A segunda vez também aconteceu quando ele retornava do cabaré de Tonho do Mira. Tinha dormido além da conta depois do cha-mego e acordou apavorado com o horário. Nem tomou banho, vestiu a roupa na maior rapidez, pagou Cinelândia, deu-lhe um beijinho de despe-dida e saiu apressado. Chegando em casa, foi para o banheiro tomar uma ducha. Janete entrou atrás para providenciar uma toalha e um sabonete. Ao vê-lo tirar as roupas, surpresa e incrédula, disparou: – O que é isso Temístocles? Cadê sua cueca? Você está vestido com uma calçola de mulher! Quando olhou, espavorido, redarguiu na lata: – Puta que pariu! Vesti a calcinha que estava no banheiro do Palácio pensando que era minha cueca!
E passou a explicar o inexplicável: – Aquele palácio não tem jeito! Além de ladrões tem também muita puta. Ora, só pode ser! Tive uma defecagem danada e fui ao banheiro. Quando tirei a calça me borrei todo, sujando todo ambiente. Passei quase uma hora ali dentro, limpando a cu-eca e o local. Quando saí, pensando que era a minha cueca, vesti esse apetrecho aí que vocês chamam de calçola. Só pode ser de alguma puta que esqueceu lá dentro! Na próxima semana vou reclamar com o gover-nador! Ele pegava a calcinha com nojo, entre dois dedos. E Dona Janete, como sempre paciente, falou de inopino: – Eu logo vi! Mas suas peripécias na arte das mancadas na prática da libertinagem eram muitas, cantadas em prosas e versos. Abelardo, boquirroto de alta linhagem, raivoso e en-ciumado do romance mantido pela sua Cinelândia com o professor, o cha-mava também de “O Belo da Tarde”, numa alusão ao filme A Bela da Tarde, com Catherine Deneuve, onde ela mantém encontros íntimos com amantes num bordel. E ia o nosso professor sempre se saindo bem dos desatinos flagrados. Mas esse último caso até o cão duvidou que ele se sairia bem. Afinal, foi um flagra que Dona Janete deu que não tinha saída para ele. Os dois já estavam aposentados e vivendo mais em casa, Te-místocles praticamente não saía. Sua esposa, semanalmente, por duas ou três vezes, visitava a sua irmã e uma vez no mês ia no banco receber os seus proventos. Num desses dias, ao chegar na agência bancária, per-cebeu que havia esquecido a carteira de identidade. Voltou à residência para pegar o documento. Quando chegou no quarto, vislumbrou uma cena aterrorizante para os seus olhos.
Não quis acreditar, mas a realidade explodia na sua mente. Temístocles, nu na cama, tendo relações sexuais com Domitília, a
empregada. – Temíííístocles, o que é isso pelo amor de Deus? O susto foi grande! Nervoso, sem saber o que fazer, não teve outro jeito: – O que é que estou fazendo aqui? Quem é esta mulher? Por que estou aqui desse jeito? Tarzan está no lugar errado! Saiu do quarto correndo, des-pido, e no quintal subiu na velha mangueira e ficou lá no alto, num grito ensurdecedor e contínuo, num autêntico estilo Johnny Weissmuller, o grande intérprete de Tarzan no cinema. Quando parava de gritar, pergun-tava por Jane e pela macaca Chita, a namorada e o animal de estimação do personagem cinematográfico. Foi um Deus nos acuda! Os vizinhos se aproximaram, todos sem acreditar no que estavam vendo. Dr. Madeira, vendo aquela cena, disse logo: – Comadre Janete, não tem jeito, chame urgente o Dr. Hercílio. É caso de loucura. E ele foi internado na Clínica Santa Maria, na rua Espírito Santo, no Aribé. E Dona Janete, como sem-pre, murmurou: – Eu logo vi!
*Clóvis Barbosa escreve aos sábados, quinzenalmente.